11/01/2006

Os palavrões e o senhor Ambrósio

A nossa conversa da semana passada, como se devem recordar, aproveitou as milionárias férias de Verão e de Inverno de Sua Excelência socialista, o engenheiro José Sócrates, gozadas em plenos períodos de calamidade pública (os fogos, no primeiro caso, e a desgraçada política do aumenta os preços e aperta os salários, no segundo caso), para comparar a situação que se vive em Portugal, nos dias que correm, com a situação que se vivia em França, antes da Revolução Francesa. Então, como agora, enquanto o poder político e poder económico viviam num regabofe constante, as classes trabalhadoras, o povo em geral, definhava e finava-se entre a fome e a peste.

Mas eu comecei a crónica com um desafio aos ouvintes, a propósito de uma resposta de Buda a quem lhe perguntou o que mais o surpreendia na humanidade. Ele respondeu: «Os homens. Porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperarem a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por não viver nem o presente, nem o futuro, e vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido!»

E o desafio que eu propus foi que os ouvintes dissessem o que é que esta resposta tinha a ver com o tema da crónica. Ninguém falou disso mas, tal como também prometi, aqui vai a minha opinião. Os seres humanos vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido, porque a isso são induzidos (talvez o termo «obrigados» fosse mais adequado) por aqueles que lhes controlam a vida, por aquela minoria que detém o poder económico – e, por consequência, o poder político – e controla com mão de ferro cada segundo da nossa vida, embora digam que mais não fazem do que cumprir a vontade do povo. A nossa vontade.

O que é verdade, é que pela força bruta – nas chamadas ditaduras – ou pela subtil manipulação ideológica – nas chamadas democracias – as classes dominantes determinam e condicionam a nossa existência. Vivemos e agimos, não de acordo com as nossas necessidades reais, sonhos e ambições mais legítimas, mas de acordo com os interesses daqueles que, dominando os meios de produção, o sistema financeiro e os circuitos comerciais, nos levam a consumir o que lhes convém e a viver de acordo com padrões que, em última análise, nos descaracterizam enquanto seres racionais e livres, com vontade própria e revestidos da dignidade maior de impormos, enquanto maioria, a nossa vontade suprema. Os nossos interesses, em suma.

Não comemos o que devíamos, mas o que convém aos que nos vendem a ração da moda. Não consumimos os produtos culturais que o génio humano produziu e produz, mas os excrementos pimbas que os ricos nos reservam para que deixemos de pensar e nos apodreça o cérebro.

Levam-nos a consumir o supérfluo em vez do essencial, porque nos criam falsas necessidades, e é a satisfazê-las que aumentam as suas fortunas. Por isso, os nomes de Óscar Lopes ou Franz Kafka nada dizem à maioria dos portugueses, muito menos o que escreveram. Tal como Rubinstein, Rodin, Bernard Shaw ou Carlos Seixas são ilustres desconhecidos para quase todos nós, embora saibamos muito bem quem é Stalone, ou um tal Schwarzenegger, dois montes de músculos, dois acefalóides absolutos, que explicam como tudo se consegue à lei da bomba, da bala, do sopapo e do pontapé. É a «cultura» dominante (que por acaso é norte-americana) a impor-se e a impor-nos os seus padrões: músculo para agredir e destruir, em vez de músculo para produzir e cérebro para inventar, respeitar e amar. Morte, em vez de vida.

Toma lá um telemóvel, um carrito a prestações, um cartão de crédito para te endividares à vontade, papa as telenovelas todas, não deixes escapar um único jogo de futebol na Sport TV, de caminho, vê o Big Brother, ou a Quinta das Celebridades, ou a Primeira Companhia, vai ao hiper passar os tempos livres, come um duplo mac e compra comprimidos para as dores de cabeça que esta trampa toda te provoca, mas não te esqueças de apostar no Euromilhões até sexta-feira, antes das 7 da tarde. Depois, até podes rir-te com a conversa dos políticos a fingir que uns são melhores que os outros, e chamar-lhes palhaços, desde que votes num daqueles que as sondagens dizem que podem ganhar.

Para os ricos e para os seus cães de fila – isto é: os políticos de formação burguesa – a melhor carne, as melhores clínicas de saúde – logo: a melhor saúde – as melhores escolas, os melhores empregos, os melhores ordenados, as melhores reformas (e quantas mais, melhor…), os melhores produtos culturais, as melhores férias, os melhores automóveis, as melhores mansões ou condomínios privados, tudo o que há de melhor. E tudo isto conseguido com o nosso dinheiro, ganho através daquilo que nos vendem, dos impostos que pagamos e, sobretudo, das mais-valias que aforram ao pagarem o nosso trabalho por muito menos do que ele vale.

Perante isto, como é que um Zé-Ninguém não há-de morrer sem nunca ter vivido?, diz-me lá, ó Buda, do alto da tua sabedoria.

Mas, para além disto, outras coisas ficaram por responder ou abordar na conversa de há oito dias.

Uma dessas coisas, refere-se à linguagem utilizada por uma ouvinte que, num vernáculo puro, se socorreu de alguns palavrões para expressar a sua revolta face ao governo que temos e às políticas que sofremos. É sempre discutível se a linguagem que utilizamos é – ou não – apropriada às situações em discussão. Sou da opinião que a ofensa gratuita e injustificada, o palavrão pelo palavrão, a linguagem «suja» e violenta como forma de expressão habitual, não deve ser aplaudida. Mas tudo é relativo. O que estava em causa – e está em causa – é sabermos o que é mais grave: se chamar filhos-da-mãe aos políticos que tantas violências cometem contra milhões de portugueses, se essas mesmas violências. É claro que não são a senhoras mães dos senhores ministros que se pretende atingir, ou as mulheres, caso do outro palavrão utilizado, que tinha implícita uma cabeça ornamentada, ou uma testa enfeitada com armações, a que também se chamam chavelhos, ou chifres, pois é metafórica a expressão. Deixem-me concluir como se deve concluir, pois essas palavrões significam, tão só, gente má, gente de mau íntimo, gente que prejudica o próximo, gente sem princípios nem moral, gente que semeia o mal, gente que, conscientemente, e a coberto do poder que detém, sacrifica outra gente.

Embora compreendendo os pruridos de alguns ouvintes, convido-os, no entanto, a fazerem o seguinte raciocínio: o que é pior? O palavrão indignado, como forma de exprimir essa mesma indignação, ou a prática política que leva a miséria e o desespero a milhares de lares? É mais bonito, ou menos grave, governar-se como se governa, daí resultando menos medicamentos para os idosos e doentes, menos roupa e leite (ou leite nenhum) para as crianças? Despedir às centenas e aos milhares? Iludir, ano após ano, década após década, sempre com os mesmos argumentos e sempre com as mesmas promessas vãs, milhões de pessoas, para se chegar sempre – mas sempre! – aos mesmos resultados, a esta conclusão: NÃO HÁ NADA PARA NINGUÉM (excepto para os do costume)? Mas haverá insulto maior do que este?

Haverá?

Não! Antes de nos indignarmos com os tais palavrões, devemos indignarmos com os políticos e as políticas que tanta miséria provocam, que tanta angústia espalham em milhões de famílias, e que, directa ou indirectamente, levam ao desespero e à morte um número incalculável de nossos compatriotas.
Insultar – mesmo que de insulto se tratasse – é bem menos grave que despedir um homem ou uma mulher que são o sustento da casa. Insultar – mesmo que de insulto se tratasse – é bem menos grave que retirar poder de compra a milhões de famílias, em nome da salvação das contas públicas, enquanto meia dúzia de outras famílias e a distinta classe política se enchem à custa da fome e das carências que, fria e metodicamente, provocam. Insultar – mesmo que de insulto se tratasse – é bem menos grave que aumentar o preço dos medicamentos, retirar outros das listas das comparticipações, pagar reformas cruéis e desumanas, enquanto alguns figurões se banqueteiam com várias e opulentas pensões, conseguidas ao fim de poucos anos ou, mesmo meses.

Há, em Portugal, mais de 2 milhões de pobres. Se calhar – e naturalmente – muitos deles chamarão a Sócrates, como antes a Durão, e a Guterres, e a Cavaco, e a Soares muitos e bem merecidos nomes feios. Alguém os pode criticar por isso? Pelos vistos, há por aí umas consciências muito sensíveis que se arrepiam com essa possibilidade.

Cá por mim – e sem querer ofender ninguém – sempre digo que o maior cego é aquele que não quer ver. E que enfie o barrete quem vir que lhe serve. E só esses.

Depois, todos sabemos que há por aí muito Ambrósio, sempre pronto a adivinhar os desejos da sua dourada senhora, e a ter o bar do Rolls Royce permanentemente bem fornecido com os inevitáveis Ferrero Rocher.

E os Ambrósios são – como convém – serviçais altamente educados.


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 11/01/2006

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