18/01/2006

A fome e a vontade de comer

As más notícias continuam. Anteontem, a SIC, a abrir o seu noticiário das 13, informou os telespectadores nestes termos:

«Portugal é o país mais pobre e desigual da União Europeia

Aumenta o fosso entre os mais ricos e os mais pobres

O fosso entre ricos e pobres aumentou significativamente, havendo uma maior desigualdade entre os dois grupos de pessoas situados nos extremos da pirâmide social. Há cerca de dois milhões de pessoas a viver com menos de 350 euros por mês». (E aqui meto um parênteses para dizer que se a maioria desses 2 milhões de pessoas vivesse com 349 euros, até foguetes deitava! Enfim…).

Voltemos à SIC: «A comparação entre os rendimentos acumulados pelos 20% mais ricos e os 20% mais pobres, provam que os mais ricos detêm mais de sete vezes o rendimento dos mais necessitados». (outro parênteses para lembrar que 20% dos mais ricos são meia dúzia de famílias, e 20% dos mais pobres são centenas de milhares de seres pessoas).

Continuemos: «A tendência para a desigualdade não é só nacional, mas também mundial», esclareceu ainda a SIC, acrescentando que «o último relatório da ONU refere que nos últimos 20 anos, num grupo de 73 países, a desigualdade aumentou em mais de 50. Neste quadro, Portugal desceu de 26.º lugar para 27.º na lista do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas».

Ficámos ainda a saber que «Portugal possui a pior taxa de abandono escolar da União Europeia, o maior índice de pobreza relativa e uma das maiores percentagens de crianças pobres».
Também o jornal Público tocou no assunto, noticiando que «o fosso entre ricos e pobres em Portugal tem vindo a aumentar», para afirmar que «Portugal é, de acordo com os últimos dados estatísticos do Eurostat, o país da União Europeia onde é maior a desigualdade entre ricos e pobres».

Confirma-se, mais uma vez, o que em vários momentos temos dito a estes microfones: «Portugal detém a condição de país mais desigual da UE e de portador de maior índice de pobreza relativa, com um valor que há anos estabilizou nos 20/21 por cento, o que se traduz por dois milhões de portugueses a rendimentos inferiores a metade do rendimento médio nacional. Ou seja, mais de dois milhões de portugueses vivem com menos de 350 euros por mês», sendo que a maior parte deles nem metade disso aufere.

Quando fui à Internet confirmar estas notícias, foi-me pedido um comentário a propósito desta notícia. E eu escrevi apenas isto: «Obrigado, dr. Mário Soares; obrigado, dr. Cavaco Silva; obrigado, eng. Guterres; obrigado, dr. Durão Barroso; obrigado, eng. Sócrates; obrigado, dr. Jorge Sampaio; obrigado, enfim, PS, PSD e CDS, por tão bem, ao longo dos últimos 30 anos, terem estado à frente dos destinos nacionais». Se calhar, esqueci-me de um ou dois mafarricos de segunda categoria, mas deixem lá: apesar de diferentes, eles são todos iguais…

Pela mesma altura, o senhor Presidente da República recordou, sensibilizado, os seus 10 anos passados em Belém. Os factos e as imagens da sua presidência trouxeram à sua alma sensível uma tal emoção, que não conseguiu disfarçar uma lagrimazita ao canto do olho. Foi a segunda vez que o vi ceder à emoção e às lágrimas, e sempre por razões poderosíssimas. A primeira, foi a propósito do Euro 2004, e metia o Hino Nacional e a emoção dos jogadores e do público ao entoá-lo. A segunda, foi esta, ao recordar dez anos de boa vida e melhor ordenado.

Ora, se o ilustre Chefe de Estado chora que nem uma Madalena Arrependida por coisas assim, por tretas destas, faço ideia do pranto que brotará dos seus olhos ao lembrar-se que existem tantos portugueses a passar tão mal, tanta criança mal alimentada e com frio, tanto velhote ao desamparo, tantos homens e mulheres a experimentarem o drama do desemprego, tantos jovens à espera que se abram, neste país injusto e desigual, as portas do futuro e da esperança.

Muito chorará Sampaio todos os dias, se todos os dias se lembrar da miséria que por aí vai. Uma empresa fecha as portas, vai de armas e bagagens para a Roménia ou para a Eslováquia, deixa a ver navios 300 famílias, e Jorge Sampaio, informado da situação pelos seus assessores, fecha-se no gabinete e chora, pelo menos, 10 horas a fio. Por isso, quando, daqui a uns anitos, a História se referir a Jorge Sampaio, há-de ser pelo mais do que merecido cognome de O Lacrimoso.

Mas estamos em vésperas das eleições para o sampaio que se segue. Ainda bem que a coisa está a dar as últimas, porque já não aguento mais tanta conversa fiada, tanta propaganda à banha da cobra, tanta esguichadela de sapiência bacoca, tanta vaidade, tanta ambição e tanta mentira.

Há dias, em Setúbal, Mário Soares, descontrolou-se e deixou sair pela boca fora o que lhe vai na alma. Furioso pelos apoios que Cavaco está a receber dos banqueiros e outros grandes capitalistas, disse mais ou menos o seguinte: «Essa gente não aprendeu nada com o 25 de Abril: agora apoiam Cavaco Silva, sem perceberem que, se Cavaco ganhar, virá aí a instabilidade, a conflituosidade social, o que não aconteceria comigo. Há 20 anos apoiaram-me, e voltarão a apoiar-me, se eu ganhar as eleições».

Não poderia ser mais claro: Cavaco, fará o frete aos banqueiros, sem dó nem piedade, à chanfalhada, se for preciso, como, aliás, aconteceu quando foi 1.º ministro, porque ele não parava para pensar, pois nunca se enganava e raramente tinha dúvidas; Soares saberá fazer o frete aos mesmos banqueiros, mas adormecendo primeiro a rapaziada, dando um ar de esquerda – e democrático, salvo seja… – à mesma política de extorsão e saque das classes trabalhadoras. A confissão só lhe saiu porque, por um lado, a idade já lhe vai pesando dentro da caixa craniana; e, por outro, porque a raiva de se ver traído pelos seus amigos capitalistas, lhe ofuscou a pouca lucidez que ainda tem. Enfim, confessou-se…

Apesar de estar farto da campanha – como, com certeza, quase todos os portugueses – espero que haja uma segunda volta, porque enquanto há vida, há esperança. E a esperança é que a decisão a tomar não seja entre o candidato da direita e um candidato de direita. Porque se for, meus amigos, no dia 12 de Fevereiro ninguém me vai apanhar na mesa de voto.

Pela primeira vez depois de 1969, quando votei na Oposição Democrática (então unida na chamada CDE), contra o Acção Nacional Popular, de Marcelo Caetano, e a CEUD, de Mário Soares, que traiçoeiramente negociou com o governo fascista a sua vinda a Portugal para dividir as forças que se opunham ao regime (mas que grande banhada que Soares, então, levou!), pela primeira vez desde 1969, dizia-vos eu, nunca deixei de votar na esquerda – e não é agora que vou mudar.

Mas, caros amigos, se não houver um candidato de esquerda a disputar a 2.ª volta, nem ao trabalho de votar nulo ou em branco me vou dar. Cavaco, Soares ou Alegre, cada um no seu estilo (ou falta dele), e cada um em graus diferentes, são solidariamente responsáveis pelas políticas que, ao longo de três décadas, castigaram os portugueses. Na governação, ou na Assembleia da República, estiveram sempre de acordo com as medidas que atiraram Portugal e os portugueses para pântano em que nos encontramos. Nenhum deles vai, agora, renegar a sua vida inteira, o seu edifício ideológico, nenhum deles vai passar a ser o que nunca foi.

Mas enquanto há vida, há esperança. E a esperança, no dia 22, é, para além de forçar a 2.ª volta, impedir que ela se dispute entre a fome e a vontade de comer. Ou entre o roto e o nu. Ou entre o mais do mesmo… e o mesmo do costume.


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 18/01/2006

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