04/01/2006

José Sócrates e Maria Antonieta

Perguntaram a Buda: «O que mais te surpreende na humanidade». E ele respondeu: «Os homens. Porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperarem a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por não viver nem o presente, nem o futuro, e vivem como se nunca fossem morrer, e morrem como se nunca tivessem vivido!»

Se me perguntarem, agora, se isto tem alguma coisa a ver com a crónica desta semana, eu respondo que não sei. Acho que tem… e acho que não tem. Mas fica um desafio: se os ouvintes encontrarem alguma relação implícita com o tema desta semana, arrisquem uma resposta. A minha – essa – fica para daqui a oito dias. Valeu?

Então, vamos à conversa de hoje.

Quando, no Verão do ano passado, a país ardia de lés-a-lés, Sua Excelência, o primeiro-ministro socialista, José Sócrates, abalou para um requintado safari no Quénia. Em Portugal, milhares de hectares eram dizimados pelos incêndios. Morriam bombeiros e populares, as chamas devoravam florestas, pomares, gado, casas, consumindo, em muitos casos, as economias arrecadadas ao longo de toda uma vida, ou os únicos meios de subsistência de milhares de compatriotas nossos. Em Maio desse mesmo ano, do alto da sua empáfia e irresponsabilidade, garantira ao país, no tom deslumbrado e arrogante do costume, que o governo havia tomado medidas para evitar a tragédia que, afinal, veio a acontecer.

Durante o inferno, Sua Excelência optou por continuar a gozar as suas belas férias, e encarregou o sempre sorridente ministro Costa para o representar e tomar as medidas necessárias. Viu-se o resultado.

Chegou o Natal, chegou o novo ano, e o mesmo governo, chefiado pelo mesmo primeiro-ministro, do mesmo partido socialista, com a mesma arrogância e insensibilidade, atira-se como lobo esfaimado aos magros ordenados dos portugueses e, ao mesmo tempo, abre a porta aos mais violentos aumentos de preços de que há memória.

Uma das maiores subidas é a dos combustíveis, que sobem quatro cêntimos por litro. As novas tarifas atingem também outros bens e serviços, como a electricidade, os transportes, as portagens e o tabaco. E, logo a seguir, aumentarão as rendas, já para não falar no Imposto Automóvel e no imposto sobre o tabaco, que aí só não se defende quem não quer. Mas a maior subida é a do pão, com um aumento de dez por cento!

Se alguém o questionasse dizendo que, como as coisas estão, milhões de portugueses nem pão poderão comer, Sócrates, este facínora político que governa o país, responderia, certamente, como respondeu Maria Antonieta, quando lhe disseram que o povo nem pão tinha para comer: «Não têm pão? Comam brioches!»

Mas os aumentos dos transportes, dos combustíveis e da electricidade, para além dos agravamentos que sofrem, vão provocar um efeito de reacção em cadeia em quase tudo o que se consome. A electricidade, por exemplo, aumentou, desde as zero horas do dia 1 de Janeiro, 2,3 % para os clientes domésticos, e mais 8,9 % para as empresas industriais. Como a coisa é dita, até parece que este aumento para as empresas não vai tocar no cidadão comum, como se a primeira coisa que as empresas vão fazer não seja aumentar o preço daquilo que produzem, para fazer repercutir nos consumidores – e não nos seus lucros – o aumento da electricidade. E o mesmo se passará com os transportes, os combustíveis ou as portagens. Paga o Zé, que é para isso que ele existe, porque sempre foi assim – e assim há-de ser enquanto quem mandar o fizer por conta e risco do sistema económico em vigor, mais conhecido por capitalismo, agora disfarçado de sociedade global.

A terra é uma aldeia global, proclamam eles, sorridentes e afáveis, querendo dar a entender que somos todos iguais e tudo está, da mesma maneira, ao alcance de todos. Li não sei onde – e só por isso não posso dizer-vos o nome do autor – que essa ideia da aldeia global tem uma pequena coisa que importa salientar. É que há a Aldeia de Baixo e a Aldeia de Cima». Pois há…

Mas, ao mesmo tempo que estes aumentos brutais, cruéis, verdadeiramente assassinos eram anunciados, o governo socialista apenas quer aumentar os trabalhadores em 1,5%. Só podendo impor esses aumentos aos funcionários públicos, eles são, no entanto, uma balda preciosa para as empresas privadas, que se agarram a esse tecto salarial com unhas e dentes.

Mas onde parava Sua Excelência, o socialista José Sócrates, que ainda é primeiro-ministro, quando estas triste notícias da sua governação se abatiam sobre os portugueses, cada vez mais entalados entre a espada do PS e a miséria da parede? Estava na Suíça, meus amigos, a gozar a crise – ou a gozar com a crise – esquiando nas alvas encostas de uma estância de turismo para ricaços. E não fosse um providencial trambolhão – certamente menor do que aquele que, mais dia, menos dia, Sua Excelência socialista dará do cadeirão do poder – ninguém saberia da sua escapadinha. Mas o destino tem destas coisas, o fulano estampou-se, fez um dói-dói no joelhinho, e a notícia chegou aos meios de comunicação social. Grande azar!

O povo a apertar o cinto, o poder de comprar a escoar-se-lhe por entre os dedos como areia seca, a vida a ficar insuportável para um número cada vez maior de portugueses, o desemprego a aumentar, os sacrifícios a serem exigidos com a mesma promessa – nunca cumprida – de sempre, que é essa de darmos hoje para recebermos amanhã, um amanhã que nunca chega – e nunca chegará, pelo menos enquanto esta gente estiver na mó de cima – bem, dizia eu que estava o povo a ser vampirizado, e o Drácula Sócrates a esquiar na Suiça, porque aos Dráculas deste mundo a crise nunca chega.

É aqui que me permito comparar – salvaguardadas todas as distâncias – a situação existente hoje em Portugal e aquela que se vivia, em França, nas vésperas da Revolução Francesa.

Lá, uma monarquia absoluta; aqui, uma maioria absoluta, também ela arrogante, insensível e acreditando que é omnipotente e intocável.

Lá, o problema do défice; cá… o problema do défice.

Lá, o povo a pagar o rombo das finanças públicas; cá, o povo a pagar o rombo das finanças públicas.

Lá, a nobreza e o clero, bem como as varejeiras que esvoaçavam em seu redor, viam a crise passar-lhes ao lado, e continuavam a sua vida de faustoso espavento: cá, os grandes grupos económicos, as grandes famílias, os governantes de plantão à caserna e as varejeiras que saltitam dos ministérios para as administrações, institutos e fundações – e vice-versa – também estão imunes à crise, e até engordam com ela.

Lá, o tesouro esgotava-se nos palácios, na ostentação da corte, nas caçadas reais, e, por exemplo, a primeira filha de Maria Antonieta, para que não crescesse, no dizer de sua mãe, «entre uma multidão inútil de pessoas de serviço», só teve direito a 80 criados; cá, o tesouro esgota-se em expôs, em euros, em otas, em tgv, em Lisboas/Dakar, em campeonatos de vela, em ordenados e reformas milionárias para a nobreza reinante (isto é: governante) e em cortes de boys e girls partidárias.

Lá, o poder estava entregue à nobreza, e, depois, tentando evitar males maiores, a uma Assembleia de Notáveis, que era escolhida pela camarilha real, normalmente príncipes de linhagem, prelados, nobres, magistrados, presidentes de municípios, tudo gente das classes privilegiadas, excepto seis representantes do sector popular. Por cá, o poder está entregue à camarilha dos partidos dos privilegiados de hoje e, tal como lá, também se delibera sem decidir nada de prático, salvo que tudo deve continuar na mesma, com uns a pagar e com os outros a gozar dos rendimentos.

Finalmente: lá, enquanto o povo morria de fome e de peste, Sua Majestade, Maria Antonieta dançava na Ópera, ceava no Bagatelle, apostava fortunas ao jogo, e gastava outras em luxos e desvarios, como foi mandar construir e mobilar o pequeno Trianon, ali dando festas em que fazia o papel de deusa e onde, indiferente à sorte dos franceses, se divertia o mais possível, especialmente à noite: cá, enquanto o povo sofre a política do atarraxa, Sua Excelência, José Sócrates, o primeiro-ministro socialista que a isso o obriga, diverte-se com as feras no Quénia, se é Verão, ou vai esquiar para a Suíça, se é Inverno.

Os dois absolutos, os dois indiferentes e insensíveis, os dois fora do mundo das pessoas comuns. Os dois vivendo das mesmas artes, os dois causando os mesmos males, os dois olhando-nos como seres inferiores.

Há quem diga – a História e todos os historiadores dizem-no – que depois da Revolução Francesa o mundo não voltou a ser o mesmo. É possível. Mas, pelo menos em Portugal, a coisa está a pôr-se muito igual ao que acontecia em França até a guilhotina entrar ao serviço…


Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 04/01/2006

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