14/12/2005

Um bacilo chamado miséria

Naturalmente, muitos ouvintes julgarão que a nossa conversa de hoje vai tocar nos temas que têm dominado os noticiários nos últimos dias: o ex-combatente que invectivou Mário Soares, a morte do chefe da PSP, abatido pelo gang que anda, há semanas, a assaltar as caixas do multibanco, ou, ainda, a explosão de um dos maiores depósitos de combustível no Reino Unido.

Francamente, não me apetece embarcar nessa onda e alimentar a gritaria que por aí vai.

Em primeiro lugar, Mário Soares não foi agredido, como se pretende fazer crer, salvo se sacudir o braço de um tipo que passa a vida a estendê-lo a torto e a direito, na caça ao voto, já seja uma agressão. Depois, o homem não disse nada demais, bem pelo contrário: disse de menos. Se eu tiver, um dia, a sorte de encarar o maior aldrabão que, em termos políticos, nasceu em Portugal, certamente lhe direi (se a jagunçada deixar) muito mais do que aquilo.

Quanto ao gang que abateu o chefe da PSP, já está tudo resolvido. O ministro Costa, sempre sorridente, desencantou, de um dia para o outro, não sei quantos coletes à prova de bala e mais uns milhões de euros para trocar as fisgas das forças de segurança por arcos e flechas. Por outro lado, foi preciso morrer um agente para que as polícias fossem, em força, à procura dos criminosos, que estavam referenciados há várias semanas e, segundo consta, um deles até foi solto por um tribunal qualquer. Há muito que ouvíamos dizer que o bando tem sede em Espanha, na zona de Sevilha, e que andava por aí a sacar as caixas multibanco sempre com o mesmo modus operandi e mais ou menos à vontade. Francamente! Roubar viaturas de luxo, carrinhas Ford Transit, reboques e, ainda por cima, assaltar sempre locais com as mesmas características, não será assim uma coisa tão discreta e imprevisível quanto isso. Adiante…

Quanto à misteriosa explosão dos depósitos de combustíveis, relativamente perto de Londres – e que a polícia, insistentemente, teima em considerar acidente – das duas, uma: ou foi mesmo acidente (e era deplorável a segurança das instalações e equipamentos); ou não foi acidente, e as coisas são mais complicadas do que parece. A verdade, é que a al Quaeda, dias antes, avisou que iria atacar alvos desta natureza.

Seja como for, hoje não vou atrás da actualidade noticiosa, do espavento, da notícia que está na berra. Esta semana preocupou-me mais um outro tipo de notícia, mais silenciosa, mas não menos preocupante e significativa. E, acima de tudo, bem ilustrativa do nosso terrível atraso social, isto é, da impiedade com que os portugueses têm vindo a ser tratados nos últimos anos. Vamos a isso.

Portugal é o país da Europa Ocidental com maior incidência de tuberculose. Este tristíssimo sinal de terceiro-mundismo – que só não espanta porque somos os primeiros em tudo o que é mau ou péssimo – floresce por todo o lado, e atacou, recentemente, onde menos seria de esperar: dentro dos próprios hospitais. E isto acontece quando o Governo entoa cânticos ao nosso desenvolvimento, que é disso que fala quando anuncia que vamos construir um aeroporto novinho em folha, uma rede de comboios de altíssima velocidade, e depois de termos construído – nunca é demais recordá-lo – dando provas da nossa grandeza e inquestionável modernidade, uma grande exposição internacional e dez estádios para futebol, cuja maioria, daí para cá, tem servido de poiso a pombos e pardais, sem falar nas moscas que, no tempo quente, apreciam e aplaudem o esforço dos craques.

Sobre a tuberculose, dizem os entendidos que ela existe em todo o mundo, mas é mais comum nas regiões onde existe muita pobreza, promiscuidade, más condições de higiene e saúde pública deficitária, e, ao dizê-lo, estão a fazer um retrato, a corpo inteiro, de um país chamado Portugal. De facto, só em 2004, foram notificados 3.511 novos casos de tuberculose no nosso país, o que corresponde a uma incidência de cerca de 40 casos por cada cem mil habitantes. Uma situação bem longe do que se verifica em países como o Chipre, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Malta, Holanda ou Suécia, com menos de 10 casos por cem mil habitantes.

Mas dizia eu que a tuberculose, farta de vitimar nos subúrbios miseráveis das nossas grandes cidades, atacou em força onde seria menos previsível, concretamente no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de S. João, no Porto, onde nove profissionais de saúde foram infectados com o bacilo. Na verdade – e segundo os profissionais de saúde já fizeram saber – não é certo que os números se fiquem por aqui, temendo-se que mais pessoas estejam infectadas. É que, de acordo com o Centro Nacional Contra Riscos Profissionais, este ano foram diagnosticados cerca de 30 casos de tuberculose em hospitais e centros de saúde na Região Norte. Um médico do Centro de Saúde da Senhora da Hora, em Matosinhos, reconheceu a gravidade do problema e disse aos jornais: «Como médico, sei que a nossa profissão é de risco. E até conheço alguns colegas infectados com várias doenças. Por isso, o que veio agora para os jornais peca por ser tardio». Já o responsável pelo Serviço de Pneumologia do Hospital de S. João, sabendo melhor o país em que vive (e como o poder é vingativo), tentou desdramatizar, embora confirmasse o internamento, no mês passado, de um doente com tuberculose na laringe. «Vários profissionais de saúde foram infectados, mas é um risco a que estão sujeitos médicos e enfermeiros. Isso acontece com frequência no meu serviço. Mas o problema está ultrapassado. É preciso combater a doença e o alarmismo», disse ele. Mas a verdade é que os utentes do HSJ estão mesmo alarmados. Disse um deles aos jornais: «Quando soube o que se tinha passado não fiquei admirado. Este hospital não tem condições e o atendimento é péssimo. Vim acompanhar um doente, porque se o problema fosse comigo, ia ao Santo António».

Prestimosos, alguns especialistas nesta matéria dizem desconhecer as razões porque, em Portugal, as taxas de incidência da tuberculose são tão altas, acrescentando que «o elevado número de casos de toxicodependentes e doentes com sida pode ajudar na explicação. Estes grupos são mais susceptíveis e neles é maior a facilidade de contágio, o que vai proporcionar o aparecimento de formas mais graves da doença, com maior resistência aos medicamentos», dizem.

Além desta explicação – e muito candidamente – apontam ainda como razão o facto de, muitas vezes, as pessoas desvalorizarem os sintomas, ignorando a tosse persistente, o cansaço, a febre. Afirma um deles: «As dificuldades em diagnosticar a doença podem também ajudar a justificar os números. Mas não é fácil perceber porque são tão elevados, já que temos acesso aos medicamentos e à vacinação à nascença».

Não é que estas razões não sejam verdadeiras, mas… ou muito me engano, ou alguns senhores doutores esquecem-se da razão mais decisiva: a miséria galopante que vai por aí. Os milhões de portugueses e os muitos milhares de estrangeiros de quem o poder político há muito se esqueceu, voltado que está para outras prioridades. Tuberculose, sida, toxicodependência, desemprego, trabalho precário, salários baixos, salários em atraso, este é o bacilo, o bacilo chamado miséria, que abre as portas ao outro, o tal bacilo, o famoso bacilo de Kock.

Enquanto isto, José Sócrates já pensa em fechar os hospitais de S. José, do Desterro e dos Capuchos. Para os substituir, três novos hospitais, um deles – o de Loures – a construir no âmbito de uma parceria público-privado, como convém ao negócio em que a saúde se transformou.

E depois… já pensaram bem quanto não valerão os terrenos onde estão os hospitais que o governo quer encerrar? Quem será o feliz contemplado com este novo negócio da China que já se adivinha?

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 14/12/2005

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