13/08/2005

Dois Escândalos e uma Farsa

Se esta crónica tivesse título, só podia ser um. «Dois Escândalos e uma Farsa». Dois escândalos dos grandes – tenebrosos, como veremos – e uma farsa que, embora faça rir, como compete a uma boa farsa, acaba por fazer chorar, tal a dimensão do seu ridículo.

O primeiro escândalo fala-nos de guerra e servidão. Vamos a ele:

Mais de duzentos militares portugueses partiram recentemente para o Afeganistão, com a missão de controlar o aeroporto de Kabul. No Afeganistão, como sabem aqueles que procuram mais alguma informação para além daquela que é dada pelos jornais, rádios e têvês nacionais, as forças norte-americanas já mal saem dos seus aquartelamentos e fazem todos os possíveis por encarregar das missões que envolvem maiores riscos as forças dos países seus aliados. Os seus lacaios. Depois de meses de brutais bombardeamentos, a pretexto de caçar bin Laden e depor o regime talibã, a que se seguiu a ocupação militar, política, económica e cultural do país, a vida para os afegãos piorou substancialmente e, de bin Laden, nem sombras.

Uma ou outra iniciativa de carácter humanitário, preparada mais para europeu ver nos canais temáticos do que para resolver problemas reais, não chega para alterar um cenário de pura miséria, onde sobreviver se tornou a palavra de ordem. Na verdade, o principal objectivo dos norte-americanos está, por enquanto, assegurado: ocupar um país situado numa região estratégica, na rota das grandes reservas do petróleo e do gás natural. De burkas e direitos humanos violados já não se fala, embora as duas coisas continuem a ser uma realidade quotidiana, ao que a presença de forças estrangeiras de ocupação confere uma nota ainda mais trágica e sinistra.

Neste contexto, a missão que o governo português aceitou cumprir, como autêntico subempreiteiro de uma desavergonhada guerra de agressão e domínio colonial do mundo e dos seus recursos naturais, implica-nos cada vez mais num contexto autenticamente explosivo. Portugueses em Kabul, de camuflado e armas na mão, é coisa que não entendo nem aceito, e que, em consequência, repudio. Mas é coisa que pago, como todos pagamos, pois a missão de lambe pés ao IV Reich e ao seu chefe – o bronco nazi, George Bush – custa às nossas finanças não sei quantos milhões de euros. Muitos milhões de euros.

Dizia há dias, a este propósito, um popular entrevistado pela televisão, no meio de um incêndio que devorava florestas e habitações, que os bombeiros não tinham meios suficientes para combater o fogo, mas que havia dinheiro para mandar homens para uma guerra que não é nossa, nem justa. Benditas palavras, que demonstram que, apesar de tudo, ainda há gente de olhos abertos neste país, e coragem para dizer o que é urgente dizer. Nem tudo está perdido.

Então, dizem os governantes que a situação das contas públicas é calamitosa, apela o venerando chefe de Estado aos portugueses para que façam sacrifícios de cara alegre com muita auto-estima, aumentam-se os impostos, ataca-se a saúde, agravam-se as prestações sociais, aumenta-se a miséria e as dificuldades que já tocam em milhões de portugueses, mas há dinheiro para ir combater as guerras sujas dos outros?!

Este é um escândalo que não posso aqui deixar passar em claro, tanto mais que foi por estas e por outras que espanhóis e ingleses já experimentaram na pele o resultado dos seus governos terem participado na vertigem imperial dos norte-americanos. É que os senhores Blair, Aznar, Berlusconni, Durão ou Sócrates, tal como Bush, esquecem-se que a globalização não se aplica só à economia, também se aplica à guerra, e que por muito forte que seja uma nação, já não pode, como sucedia há um século, ir despejar bombas onde muito bem lhe convier, ir roubar e humilhar milhões de pessoas em África, no Médio Oriente ou na Ásia, e não ficar à espera que o mesmo terror lhe bata à porta, ou lhe entre pela casa adentro. Em Nova Iorque, em Madrid, em Londres, ou em Lisboa.

O outro escândalo passa-se mais perto. Na Caixa Geral de Depósitos. Aliás, este escândalo é do tipo «dois em um». É escândalo, porque com as mexidas agora operadas na administração desta instituição, lá vamos nós pagar mais indemnizações e reformas aos senhores afastados. Mas é escândalo, porque um dos premiados com um lugarzinho na administração foi um fulano que, se isto fosse um país a sério, deveria ter saído de circulação (da vida pública) em Dezembro de 2000. Falo de um antigo caixa da Caixa Geral de Depósitos, que a porca da política alcandorou, um dia, a ministro deste acampamento chamado Portugal, e de tal maneira se comportou que foi o próprio Jorge Sampaio a exigir, nessa altura, que Guterres o demitisse.

Falo, pois claro, de Armando Vara, o exemplo mais acabado de que Portugal se transformou numa autêntica estrumeira – e numa estrumeira maior sempre que o PS chega ao poder. Armando Vara, como já disse, era um simples caixa numa agência de CGD, lá para Trás-os-Montes, e disso – diz quem o conhece bem na instituição – nunca passaria se não se tivesse agarrado ao PS e, lá dentro, trepado com unhas e dentes. Enveredou pela política e, como para se ser ministro, em Portugal, só é preciso estar-se do partido certo e lidar com a ética como se a ética fosse uma gamela, o tal Vara deu consigo em ministro, sem saber ler nem escrever, coisa que era muito natural na altura em que Guterres a dirigia o barco.

Foi assim que rebentou o escândalo da Fundação para a Prevenção e Segurança, um esquema diabólico que gastava dinheiro do Estado a dar com um pau, mas sem que se soubesse bem para onde ele ia. Disse-se, na altura, que tudo não passava de uma esquema para meter dinheiro nos cofres do PS, de tal modo que a sigla FPS não queria dizer Fundação para a Prevenção e Segurança, mas Fundos Pró PS. Sampaio exige, então, a demissão de Vara e, surpresa das surpresas, o antigo caixa, em vez de voltar às suas funções, regressa à CGD mas, – veja-se bem! – para ocupar um lugarzinho de director. Por alma de quem!? – pergunta você, amigo ouvinte, justamente escandalizado. Por alma do lodaçal infame em que se transformou a nossa vida política, com a boyada toda a abocanhar o que pode, enquanto pode. Pois foi este caixa que, passou a director por obra e graça da política, que agora se vê promovido a administrador – e cujos méritos conhecidos são apenas os de ser do PS. Sampaio, entretanto, tão preocupado com as trapalhadas de Santana, vai deixando passar em claro as trapalhadas de Sócrates, embora esta governação cheire cada vez mais a latrina.

Se algum ouvinte, aqui chegados, sentir náuseas e precisar de ir vomitar, eu espero. Tudo bem? Continuemos, então.

Depois da tristeza dos escândalos, o riso da farsa. Das presidenciais. O maior partido de Portugal, que governa com maioria absoluta, que se porta com os portugueses como se tivesse o rei na barriga, não conseguiu parir um candidato presidencial credível e capaz de representar o PS, já que a esquerda é outra coisa totalmente diferente.

Cá para mim, não é que não houvesse gente no PS com a água a escorrer-lhe da boca, capaz de dar tudo e mais oito tostões para se sentar em Belém. Mas a esses falta-lhes coragem para entrarem numa competição que não têm, à partida, a certeza de vencer. É que a figura salazarenta de Cavaco paira há muito, ameaçadora, sobre o palácio de Belém, e, segundo as sondagens, tem fortes possibilidades de ganhar. No fundo, para além dos tachos e do prestígio que resultam de se ter um camarada na presidência da República – e que uma vitória de Cavaco lhes roubaria – os socialistas nem temem a magistratura do professor de Boliqueime, pois, como bem reconheceu Marcelo Rebelo de Sousa, a política económica de Sócrates, de tira ao pobre para dar ao rico, tem todos os condimentos para fazer Aníbal salivar de prazer.

Mas o que é grotesco, neste madrugar das eleições presidenciais, é a avidez senil de Mário Soares, sempre sedento de protagonismo e ainda convencido de que é o pai e a mãe da democracia portuguesa. Bom, mas sendo esta democracia o que é, com um estado falido, com a pobreza e as desigualdades sociais em constante alastramento, com o trabalho precário, os salários em atraso, as falências e as deslocalizações a serem notícias todos os dias, com a Sida e a tuberculose, o analfabetismo e a corrupção a colocarem o nosso país no top de tudo o que é negativo ou nefasto, pois que seja Soares o pai, a mãe e os resto da família desta triste democracia.

Sim, porque de uma verdadeira democracia, humanizada, justa, solidária e capaz de fazer as pessoas felizes, sem fome, sem miséria, sem desemprego, sem desigualdades, sem tubarões a devorarem peixe miúdo, dessa democracia ele nem quer ouvir falar. Por isso, a farsa das presidenciais, em vez de fazer rir, acaba por fazer chorar.

Crónica de João Carlos Pereira - Lida aos microfones da Rádio Baía em 07/07/2005

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