15/10/2008

A CRISE – ALGUNS FACTOS E A CAUSA

Comecemos por algumas notas soltas:

Após um longo período de expansão, o mercado da habitação entrou em regressão. O número de contratos para compra de casa no segundo trimestre do ano caiu quase 18% em relação ao mesmo período de 2007. Houve menos casas vendidas no Verão de 2008, fruto natural da perda de poder de compra da população portuguesa. De igual modo o montante concedido nos contratos tem diminuído. Apesar do valor médio de cada empréstimo rondar os 96 mil euros, o montante global sofreu uma queda de 15,8% no segundo trimestre, face ao mesmo período de 2007.

Entretanto, vimos uma interessante reportagem na televisão, pela qual ficámos a saber que os imóveis de luxo se esgotam quando ainda estão em planta ou na fase de construção, o que significa que a crise atinge as classes de menores rendimentos, onde a chamada classe média já se inclui de há uns anos para cá, mas não afecta minimamente a dita classe alta, que continua a esgotar mansões e condomínios de luxo.

Também a venda de automóveis está em queda, embora no segmento dos carros de grande cilindrada a crise não se faça sentir…

Face às políticas de contenção salarial, cresce o número de portugueses sobreendividados. Muitos recorrem à DECO para obter apoio a fim de renegociar o pagamento das dívidas aos bancos. Entre Janeiro e Setembro, foram 1.323 as pessoas que recorreram a esta Associação de Defesa do Consumidor. Mais 200 do que em igual período do ano passado. É o valor mais alto de sempre.

O agravar galopante das taxas de juro, o desemprego e a corrosão dos salários são as principais explicações para cada vez mais pessoas falharem as mensalidades. Algumas pessoas que pedem ajuda chegam a ter dez a 15 créditos, e muitas acabam por não conseguir honrar os compromissos e perdem os bens.

Não menos interessante e significativo é o reflexo disto tudo ao nível da fé. Os lojistas de Fátima também se queixam da crise, pois os santinhos, medalhas, imagens e todo o tipo de recordações relacionadas com as aparições ficam nas prateleiras. E até nas igrejas, onde a fé levava os crentes a abrirem os cordões à bolsa, sente-se como nunca a penúria que alastra entre a população portuguesa. Nos últimos dois anos, o total das dádivas e esmolas que as pessoas dão nas eucaristias ou deixam nas caixinhas a isso destinadas, sofreu uma quebra na ordem dos 50 por cento.

Segundo o CM conseguiu apurar, nas missas do último domingo caíram nos pratos e cestos que percorrem as igrejas, em média, menos 30% das esmolas do que no domingo anterior.

Aquele jornal contactou responsáveis pelos conselhos económicos de 37 paróquias das dioceses de Braga (12), Porto (10), Lisboa (10) e Évora (5), e todos disseram que ontem se viveu «o domingo mais negro» dos últimos anos nos ofertórios das missas em Portugal. Afinal, não é só nas bolsas de valores que as coisas se pintam de preto…

Para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. Jorge Ortiga, «é natural que as pessoas, em alturas de crise, cortem também nas oferendas», mas disse que «este não é, de todo, o aspecto que mais preocupa a Igreja. Nós estamos preocupados é com as famílias, com as dívidas que se avolumam e com o desemprego que cresce e dificulta ainda mais a vida», disse o prelado.

Também o bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, classificou ontem de «verdadeiros escândalos» os «sistemas de remuneração e gratificação de dirigentes de instituições financeiras», que «contribuíram» para a crise. «O Mundo foi abalado como uma espécie de tsunami, com consequências humanas e económicas e pondo em causa a paz social», referiu o bispo, acrescentando que «as primeiras vítimas inocentes desta crise são os mais pobres e desfavorecidos». Segundo D. António Marto, o sistema financeiro está «desligado da própria economia» e a viver de «práticas especulativas» que «não deixarão o Mundo como até agora».

Aqui chegados, conviria abrirmos os olhos e percebermos a natureza das pessoas que têm conduzido o mundo nas últimas décadas, quer a nível político, quer a nível económico. A uma conclusão chegaremos logo. Não foram, de modo nenhum, os povos, ou seja, os trabalhadores, os reformados, os estudantes, os desempregados, enfim, os milhões e milhões de seres humanos espalhados pelo planeta. Foram os donos do poder económico, os grandes magnatas e, às suas ordens, os políticos que em seu nome governam.

Apesar do tempo não estar para risos, sempre apetece soltar uma enorme gargalhada se pensarmos que esta gentinha, ainda há três ou quatro meses, apenas se dizia preocupada com o preço do petróleo, com a inflação e o défice das contas públicas. Ao mesmo tempo, prometia o crescimento económico, com mais emprego e melhor qualidade de vida e cantava loas ao mercado e à livre concorrência, um e outra tidos como a verdadeira alma da democracia e a panaceia para todos os males. Afinal, aquilo que ontem era sagrado, é, hoje, demoníaco.

Como se esperava, a crise internacional foi para Sócrates autêntica sopa no mel. Afinal, o «engenheiro» e o seu governo estavam a fazer um «bom trabalho» com resultados magníficos, que levariam à recuperação da economia e ao crescimento económico. Mas, agora, uma malvada crise externa imprevisível, de que não tem culpa, veio dar cabo de tudo. Mas qual era a verdadeira situação do país? A que Sócrates apregoava, ou a que os portugueses sentiam e os dados até do FMI, Eurostat e Banco de Portugal mostravam sobre a evolução do nosso país, nos últimos anos?

Segundo o economista Eugénio Rosa, «em 2005-2007, de acordo com o FMI, a taxa de crescimento económico foi pouco superior a 1% ao ano, portanto um crescimento anémico. Para 2008, o crescimento previsto é apenas 0,8%, e de 1% em 2009. E os valores 2008-2009 são previsões que poderão ser ainda corrigidas, tal como aconteceu com as anteriores previsões do próprio FMI, do governo e do Banco de Portugal — pois é cada vez mais evidente que o País caminha novamente para a recessão económica. Nos últimos anos, a taxa de crescimento do investimento foi reduzida. Em 2005 e 2006 o investimento total registou mesmo uma taxa de variação negativa (-0,9% e -0,7%, respectivamente) e nos anos seguintes a taxa foi baixa (2,8% em 2007, e 1,6% é a previsão para 2008 e 2009). O investimento público diminuiu, entre 2004 e 2007, de 3,1% do PIB para apenas 2,4% do PIB. Como consequência, o PIB potencial, que dá o crescimento potencial da economia portuguesa no futuro sem inflação, atingiu valores extremamente baixos. Segundo o FMI, o seu valor diminuiu, entre 2007 e 2008, de 1,5% para apenas 1,2%, o que revela, por um lado, uma degradação crescente do aparelho produtivo português devido ao reduzido investimento realizado e, por outro lado, dificulta, para não dizer mesmo impede que, no futuro, Portugal possa atingir taxas elevadas de crescimento económico. O PIB por habitante, que é o indicador mais utilizado do nível de riqueza, entre 2005 e 2008, diminuiu de 75,4% para 72,2% da média da UE27, e a produtividade, fundamental para assegurar o crescimento económico, baixou no mesmo período de 68,7% para 67,3% da média da UE27. A Balança Corrente do País, que dá o saldo das relações de Portugal com o estrangeiro, tem apresentado elevados saldos negativos. Em 2004, o saldo negativo foi de -10.900 milhões de euros e, em 2008, o FMI prevê que atinja -19.400 milhões de euros, ou seja, praticamente o dobro, o que é indicador da crescente falta de competitividade da economia. Como consequência, o endividamento do País ao estrangeiro atingiu valores assustadores, hipotecando o futuro de Portugal. Entre 2004 e 2008, o valor dos activos portugueses pertencentes já a estrangeiros aumentou de 92.900 milhões de euros para 166.300 milhões de euros (99% do PIB), o que fez que o valor do rendimento gerado no País transferido para o estrangeiro aumentasse vertiginosamente atingindo, em 2008, cerca de 21.868 milhões de euros. Em 2004, cerca de 18% do PIB e, em 2007, o correspondente a 20,5% do PIB foi para o estrangeiro, deixando o País e os portugueses mais pobres. É este o "bom" trabalho realizado pelo governo de Sócrates; é este o estado em que se encontra o País para enfrentar a grave crise que abala o sistema mundial do capitalismo.

Entre 2006 e 2008, as remunerações médias reais em Portugal a nível de toda a economia diminuíram -1,4%. Na Administração Pública, a quebra foi ainda maior pois atingiu -3,8%. As pensões médias pagas pela Segurança Social estagnaram no período 2007-2008, tendo mesmo o seu poder de compra diminuído em 2008 em -0,4%. A parte da riqueza criada no País (PIB) que reverteu para os trabalhadores em "ordenados e salários" diminuiu, entre 2006 e 2008, de 35,2% para apenas 33,3%, ou seja, baixou em 5,4%, agravando-se ainda mais as desigualdades sociais, e as condições de vida dos trabalhadores e dos reformados. É este o "bom" trabalho realizado por Sócrates, e é esta a situação em que se encontra a maioria dos portugueses para enfrentar a grave crise que atinge presentemente o capitalismo, que vai determinar recessão económica, aumento do desemprego e a redução do poder de compra da maioria da população.

Neste momento, Sócrates, como todos os neoliberais que dominam nos media, procura fazer crer que a actual crise financeira resultou apenas de uma deficiente supervisão (veja-se o seu discurso na Assembleia da República), e que basta fazer uns remendos nesta para resolver o problema do funcionamento do sistema. Ora isso não é verdade. A "deficiente" supervisão é inevitável no capitalismo, como prova o que se verifica em Portugal a nível dos combustíveis, da electricidade, do gás, das telecomunicações, etc, cujos preços são superiores aos preços médios praticados na UE. E isto sucede devido ao domínio do poder político pelo poder económico, e à própria lógica do funcionamento dos "mercados", tão defendidos por Sócrates, cuja ganância para obter lucros elevados não olha a meios. Como afirma Alex Jilberto e Barbara Hogenboom no livro “Big Business And Economic Development”, o neoliberalismo que levou a actual crise mundial, foi tornado possível pela política generalizada de privatizações de empresas públicas que atingiu grande número de países.

Portugal não fugiu à regra. Cavaco Silva, Guterres, Durão Barroso e Sócrates, que agora derramam "lágrimas" pelo País e pelas camadas mais desprotegidas da população atingidas já pela crise, realizaram em Portugal uma política de privatizações que levou à entrega das principais empresas públicas ao grande capital privado nacional e estrangeiro. Só em 2007, 12 empresas públicas que foram privatizadas (EDP, PT, GALP, PORTUCEL, BRISA, TABAQUEIRA, CIMPOR, CUF, REN, TOTTA, CP, BES e BPI) deram aos grandes patrões privados lucros superiores a 3.457 milhões de euros. É evidente que se aquelas empresas não tivessem sido privatizadas, por um lado, constituiriam um importante instrumento no combate à crise e, por outro lado, aqueles lucros que foram para os grandes patrões privados teriam revertido para o Orçamento do Estado, dando a este meios financeiros para pôr em pratica uma politica social e de investimento público visando reduzir os efeitos da crise, no lugar das mini-medidas anunciadas pelo governo cujos resultados serão naturalmente reduzidos e insuficientes.

Um dos méritos desta crise será tornar claro a necessidade de inverter rapidamente todo o processo de privatizações. As nacionalizações não podem apenas servir para que sejam os contribuintes a pagar as consequências de uma gestão capitalista ruinosa, de que é também exemplo o Fundo de Garantia de 20 mil milhões de euros, criado pelo governo à custa do Estado para assegurar à banca o pagamento dos empréstimos que esta tenha de fazer, o que revela a fragilização clara da banca fruto da gestão capitalista.

Como contrapartida de uma política que não preparou nem o País nem os portugueses para a crise, afinal o que é que este governo tem para oferecer aos portugueses: apenas a redução não durável do défice orçamental para 2,2% feita ainda por cima num período em que a economia portuguesa estava mergulhada numa prolongada crise, o que deixou o País mais atrasado, fragilizado e desarmado perante uma globalização selvagem dominada pelo capital financeiro».

Termino citando Karl Marx, que deve rebolar-se de gozo lá no sítio onde estiver: «A superprodução é especificamente condicionada pela lei geral da produção de capital: produzir até ao limite estabelecido pelas forças produtivas, o que quer dizer explorar a quantidade máxima de trabalho com o montante de capital dado, sem qualquer consideração pelos limites reais do mercado ou as necessidades suportadas pela capacidade para pagar».

E como dissemos aqui há oito dias, as crises de superprodução estoiram quando os trabalhadores já não podem mais permitir-se comprar toda a multidão de bens que os capitalistas os levaram a produzir. A superprodução conduz a mercados saturados, os quais por sua vez levam a uma queda da taxa de lucro para os capitalistas. Confrontados com uma queda da taxa de lucro, a classe capitalista responde com cortes de salários e despedimentos maciços num esforço para cortar custos.

Estes factores são hoje evidentes com os mercados de habitação por todo o globo abarrotados com milhões de casas não vendidas (e milhões de seres humanos sem casa ou a viver em casas miseráveis) lucros em hemorragia contínua para fora dos bancos e corporações, despedimentos e cortes salariais a continuarem sem pausa.

A crise tem uma causa: chama-se capitalismo. Os factos, esses, são a prova.

Só falta condenarem-se, de uma vez por todas, os criminosos.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 15/10/2008.
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