08/10/2008

CAVACO – O DISCURSO INCOMPLETO

No seu discurso do 5 de Outubro, Cavaco Silva recordou que se vivem tempos difíceis e que «novas formas de pobreza e exclusão social» se conjugam com «novas e chocantes disparidades». Traçando um quadro negro da situação económica e social, referiu-se ao desemprego, às reformas baixas, à pobreza, às desigualdades sociais, à subida das taxas de juro e ao fraco crescimento económico como problemas a combater. Dirigindo claramente um recado ao governo, Cavaco disse que «o que é vivido pelos cidadãos não pode ser iludido pelos agentes políticos. Quando a realidade se impõe como uma evidência, não há forma de a contornar». Referiu, também, que «muitas famílias têm dificuldades em pagar os empréstimos que contraíram para comprar as suas casas».

Tratou-se de uma visão realista da realidade nacional, contrária à visão cor-de-rosa que o governo socialista vai distribuindo nas suas constantes acções de propaganda. Claro que Sócrates assobiou para o lado, como se nada daquilo fosse com ele.

Porém, Cavaco podia ter ido mais longe. Podia ter dito, por exemplo, que se a situação chegou ao que chegou, tal se deve às políticas de direita aplicadas ao longo de vários anos, todas elas de proteccionismo ao grande capital e de sangria das classes trabalhadoras, tudo dentro da mais perfeita lógica capitalista, na versão neoliberal actualmente em curso.

Cavaco devia saber que o capitalismo é uma doença e que as crises são, apenas, um sintoma dessa doença. O capitalismo é um sistema económico que dá origem a conflitos implacáveis e destruidores, seja na produção e distribuição de bens e serviços, seja na gestão e aproveitamento do sistema financeiro. Em suma: é a lei da selva. O capitalismo, que vive da exploração máxima da força do trabalho, acaba, também, por arrastar os trabalhadores para as lutas que os capitalistas travam entre si, e a que chamam competição. Os resultados estão à vista. Falências, desemprego, baixos salários, péssimas reformas, descalabro económico. A crise, em suma.

Nas últimas décadas, várias foram as formas que os grandes empresários utilizaram para travar a subida dos salários reais dos seus empregados. Uma delas, que nos últimos anos afectou particularmente Portugal, chama-se «deslocalização de empresas», levando-as para regiões onde os salários são mais baixos, ou aproveitando a entrada de imigrantes com salários mais baratos e sem quaisquer direitos. A introdução de novas tecnologias foi sabiamente usada para reduzir postos de trabalho e obrigar a que os trabalhadores, à míngua de emprego, aceitassem trabalho a qualquer preço, mesmo que fossem produzidas cada vez mais mercadorias para venda.

Os resultados eram previsíveis. Por um lado, os lucros das empresas subiam, já que, afinal de contas, os trabalhadores produziam cada vez mais sem receberem mais por isso. Mas, por outro lado, após alguns anos, os salários estagnados dos trabalhadores demonstraram-se insuficientes para lhes permitir comprar a crescente produção do seu próprio trabalho. Tendo em atenção a natureza do capitalismo, os donos das empresas, incapazes de vender tudo o que produziam, recorrem aos despedimentos como tábua de salvação. Obviamente, isso só agravou o problema.

Então, qual foi a maneira encontrada pelo capitalismo para ultrapassar a crise? O recurso ao crédito pelas classes trabalhadoras. Ou seja: o endividamento maciço. Uma vez que o poder de compra dos trabalhadores não lhes permitia comprar o que era produzido, a solução para vender o que se produzia era emprestar aos trabalhadores o dinheiro para comprar mais. E assim ganhavam em três carrinhos: continuava a política de baixos salários, vendia-se o que se produzia e ainda se ganhavam fortunas com os juros dos empréstimos concedidos. Que maravilha!

Na vertigem do lucro rápido e fácil, pouco importava aos acumuladores de riqueza a mínima análise sobre as consequências, a curto prazo, desta aventura. Mas era fácil de prever. Em breve, milhares de famílias ficaram sem capacidade para pagar as suas dívidas, o consumo voltou a retrair-se, as lojas ficaram às moscas mesmo em tempos de saldos, já só se compra o estritamente necessário e, tal como Cavaco implicitamente referiu, milhares de portugueses nem o necessário conseguem comprar.

Assim, ao falar da crise sem analisar as suas causas, Cavaco fez um discurso incompleto. No fundo, ele não quis pôr em causa o essencial, ou seja, o próprio sistema capitalista e todas as maleitas que lhes estão nos genes. Porque ele é, naturalmente, tal como Sócrates, um homem de direita, um homem do sistema.

Deste modo, então, por mais bonitas e certas que sejam as palavras, elas não passam de mera constatação da doença, mas não trazem a receita necessária para a cura.

E a receita é muito simples. Os estados devem tomar o controlo da economia e pô-la ao serviço das populações. Pôr fim à selvajaria financeira, à especulação, à corrupção e à concentração da riqueza e dos meios de produção nas mãos de meia dúzia, que, como acabou de se provar nos EUA, estão a lançar na miséria milhões de seres humanos em todo o mundo.

Resumindo: o capitalismo não é o fim da História. Um sistema de cooperação e solidariedade é possível. E necessário.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 08/10/2008.
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