16/07/2008

O FESTIM

«Os líderes das oito economias mais industrializadas do mundo (G8), reunidos numa cimeira no Japão, causaram espanto e repúdio na opinião pública internacional, após ter sido divulgada a ementa dos seus almoços de trabalho e jantares de gala.

Reunidos sob o signo dos altos preços dos bens alimentares nos países desenvolvidos – e consequente apelo à poupança – bem como da escassez de comida nos países mais pobres, os chefes de Estado e de Governo não se inibiram de experimentar 24 pratos, incluindo entradas e sobremesas, num jantar que terá custado, por cabeça, a módica quantia de 300 euros.

Trufas pretas, caranguejos gigantes, cordeiro assado com cogumelos, bolbos de lírio de Inverno, supremos de galinha com espuma de raiz de beterraba e uma selecção de queijos acompanhados de mel e amêndoas caramelizadas, foram apenas alguns dos pratos à disposição dos líderes mundiais, que acompanharam a refeição da noite com cinco vinhos diferentes, entre os quais um Château-Grillet 2005, que está avaliado, em casas da especialidade “online”, a cerca de 70 euros cada garrafa.

Não faltou também caviar legítimo com champanhe, salmão fumado, bifes de vaca de Quioto e espargos brancos. Nas refeições estiveram envolvidos 25 chefs japoneses e estrangeiros, entre os quais alguns galardoados com as afamadas três estrelas do Guia Michelin.

Segundo a imprensa britânica, o "decoro" dos líderes do G8 - ou, no mínimo, dos anfitriões japoneses - impediu-os de convidar para o jantar alguns dos participantes nas reuniões sobre as questões alimentares, como sejam os representantes da Etiópia, Tanzânia ou Senegal.

Os jornais e as televisões inglesas estiveram na linha da frente da divulgação do serviço de mesa e das reacções seguintes. Dominic Nutt, da organização Britain Save the Children, citado por várias folhas “online”, referiu que "é bastante hipócrita que os líderes do G8 não tenham resistido a um festim destes numa altura em que existe uma crise alimentar e milhões de pessoas não conseguem sequer uma refeição decente por dia". Para Andrew Mitchell, do governo-sombra conservador, "é irracional que cada um destes líderes tenha dado a garantia de que vão ajudar os mais pobres, e depois façam isto".

”A cimeira, realizada no Japão, custou um total de 358 milhões de euros, o suficiente para comprar 100 milhões de mosquiteiros, que ajudam a impedir a propagação da malária em África, ou medicamentos para 4 milhões de doentes com sida. Só o centro de imprensa, construído propositadamente para o evento, custou 30 milhões de euros».

Esta nota foi uma das muitas que me chegou via Internet. Escolhi-a, precisamente, porque, cai como sopa no mel, na crónica que tinha idealizado para esta semana.

Vimos, então, como se comprazem os políticos que governam o mundo. Deixem-me melhorar a frase: vimos, então, como se comprazem, com o dinheiro dos contribuintes (muitos deles esfomeados), os políticos que governam o mundo. Dirão algumas consciências mais dóceis ou domesticadas, a par de outras mais cínicas e malévolas, que nem todos os governantes são assim, tentando pôr de fora da insultuosa imoralidade atrás referida, os governantes nacionais. Os nossos políticos, em geral. Pois eu digo-vos, meus amigos, que, nessa insaciável ânsia de comerem à conta dos orçamentos, nada os distingue uns dos outros.

Por exemplo: repare-se, como se fosse a primeira vez, no espectáculo, a um tempo medonho e repugnante, dado pelos senhores deputados e membros do governo, em dia de debate parlamentar sobre a situação do país.

Olhe-se, primeiro, em cada um deles. Bem vestidos, bem calçados, bem nutridos. Segundo me dizem, só em perfumes, farpelas, gravatas, cabeleireiro e massagista, há ali quem gaste, num só mês, o equivalente a dois salários mínimos nacionais.

Para além de deputados na nação, suas excelências têm, na sua esmagadora maioria, um ou vários empregos cá fora. Que acumulam, muitos deles, com faustosas reformas. A que se juntarão, mais tarde, ainda outras, sem esquecer a reforma pela actividade parlamentar ou governativa, paga, é claro, por todos nós.

Ninguém, ali, sabe o que é o desemprego, o salário mínimo, os salários em atraso, o orçamento familiar que não estica até ao fim do mês, o despejo da casa, o medicamento que não se pode comprar, as urgências hospitalares, as listas de espera para uma intervenção cirúrgica ou consulta da especialidade. Ninguém, ali, tem medo do futuro, a não ser quando pensam no que poderá um dia acontecer se o bom e manso povo português abrir os olhos e lhes pedir contas por aquilo que fizeram e, em nome da moral e da decência, não deveriam ter feito, e por aquilo que não fizerem mas que, em nome do que prometeram e, sobretudo, das suas obrigações morais e constitucionais, deveriam ter feito.

E uma das coisas que fizeram, como sabemos, foi tratarem das respectivas vidinhas – ou seja: para si próprios – amanhando para toda a classe política, desde o presidente da República até ao mais cinzento dos senhores autarcas, um esquema remuneratório e de reformas impensável para o cidadão comum.

E uma das coisas que não fizeram, como também sabemos, foi acabar com a miséria que afecta milhões de seus concidadãos (se assim se pode dizer, pois de comum, entre eles e o povo, nada há) verificando-se, pelo contrário, que as desigualdades alastram e que o país apresenta dos piores índices de desenvolvimento de toda a União Europeia.

Ouçamos, agora, o que dizem. Digladiam-se em redondos e repetitivos discursos, centrados no respectivo umbigo e no da seita a que pertencem, enaltecendo inexistentes méritos próprios e assinalando os deméritos alheios, partindo sempre do princípio de que salvariam o país se poder fossem, ou de que, sendo poder, ninguém os poderá ultrapassar em competência e discernimento.

Uns e outros assim falam, à vez, sem memória – ou melhor: sem vergonha – como se a verdade não fosse que, de há décadas a esta parte, de uma maneira ou de outra, por ali andam repetindo discursos e ineficácias, sendo que a única coisa de sucesso que fizeram foi legislar em proveito próprio, garantindo para si, em termos de retribuição e granjeios vários, sem esquecer as já referidas rápidas e sumarentas reformas, um presente e um futuro tranquilos e à prova de qualquer crise. Enfim, um festim escabroso a pedir, no mínimo, um ensaio de paulada.

Não. Não me esqueci que outra preocupação deu corda à distinta classe política que nos tem governado e exercido o poder legislativo. A de garantir, seja lá como for, que o verdadeiro poder – o poder económico – continue intocável e a determinar (qual governo, qual Assembleia da República, qual carapuça!) os destinos do povo e do país.

E se provas fossem necessárias do que afirmo, aqui ficam dois breves exemplos que, para esse fim, são claros e bastantes.

A Comissão Europeia revelou que, no conjunto dos seus 27 países, só os búlgaros ultrapassam os portugueses nas dificuldades em pagar as suas despesas ao fim do mês. Ou seja: só a Bulgária está em piores condições em termos de baixos salários e falta de poder de compra. Prova-se, assim, a incompetência e o dolo da classe política no seu todo, já que ao país e ao povo não servem, como se extrai de todos os dados estatísticos nacionais e comunitários. A classe política governou e legislou para si própria e, como ficará claro a seguir, para os detentores do capital financeiro.

De facto, as investigações desencadeadas em 2005, no âmbito da chamada Operação Furacão, que visavam detectar graves situações de fuga ao fisco e branqueamento de dinheiro, estão em risco de dar em águas de bacalhau. Em causa estão empresas como o BCP, BES, BPN, Finibanco, Soares da Costa, Mota-Engil (estas duas já com cadastro devido ao célebre caso das facturas falsas), a Porto Editora, os grupos Delta e Casino Estoril/Sol, o Grupo Amorim, as empresas de Jo Berardo e Horácio Roque, entre outras menos conhecidas, mas onde se destaca o nome de Pinto da Costa. Só em fuga ao fisco, estima-se que o valor rondasse os 160 milhões de euros, muitos dos quais apressadamente pagos sem outras consequências, tendo sido diligentemente abafados os nomes dos responsáveis.

E tudo pode dar nas tais águas de bacalhau porque o poder político – nesta caso o governo do PS, de Sócrates – produziu legislação (o célebre Código do Processo Penal) à medida dos interesses dos infractores. Na verdade, os prazos definidos para a investigação de um caso como este são incompatíveis com as necessidades de realizar aturadas averiguações, pelo que vai suceder o levantamento do segredo de justiça, permitindo que, a partir de agora, os prevaricadores estejam em pé de igualdade com os investigadores, antecipando-se aos seus passos e, objectivamente, sabotando toda a possibilidade de conseguir-se prova consistente.

A isto chegámos.

E assim, entre os banquetes de Tóquio e o festim de Portugal, as diferenças, bem vistas as coisas, não existem.

É, num caso e no outro, «o povo, essa enorme e possante besta» (como dizia Erasmo de Roterdão), a pagar este lúgubre regabofe.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 16/07/2008.
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