30/06/2008

DEMOCRACIA, MA NON TROPPO…

O que terão em comum o referendo sobre o Tratado de Lisboa, mais conhecido por constituição europeia disfarçada, os voos da CIA, as promoções que antecipam os saldos, o facto de os artigos e bens de luxo não conhecerem a crise, os lucros da Galp e os bancos pagarem cada vez menos impostos? Aparentemente, nada. Mas se abrirmos bem os olhos – ou não os quisermos manter fechados, coisa que acontece a muito boa gente – a resposta saltará perante eles de forma clara e definitiva. Todas estas situações têm em comum o facto de não vivermos em democracia. Ou, se quisermos chamar a este regime político e económico uma democracia, então será uma democracia, ma non troppo. Ou seja: democracia, sim, mas não muito. Ou antes: democracia, sim, mas à medida dos interesses daqueles que bem sabemos.

Comecemos pela Irlanda. Mal foram conhecidos os resultados do referendo, logo os grandes democratas da nossa pequena praça, bem como os da praça europeia, perderam as boas maneiras. No fundo, para eles, os irlandeses tinham duas opções no referendo sobre o tal Tratado de Lisboa. Ou votavam Sim, ou votavam… Sim. Agora, puxam pelo bestunto, tentando dar a volta à coisa, pois se o voto do povo é soberano, os interesses da alta finança são verdadeiramente imperiais.

Passemos para os voos da CIA. Todo o mundo sabe o que se passa em Guantanamo, a começar por muito boa gente dentro dos próprios EUA, cujo Supremo Tribunal foi forçado, recentemente, a contrariar o palhaço de serviço na Casa Branca, determinando que os detidos têm direitos que lhes estão a ser negados.

No entanto, durante anos, a CIA e a administração norte-americana agiram como meros esbirros inquisitoriais, atirando às urtigas os princípios e os valores que dizem defender, violando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito internacional e a soberania de vários estados. Sabe-se hoje que os detidos são transportados secretamente de e para Guantanamo, fazendo escalas ilegais em vários países. Para tal, contaram com a conivência dos seus tristes lacaios europeus, entre os quais o Portugal de Durão e Sócrates. E de tal forma o corrupio de prisioneiros ilegalmente detidos e transferidos de locais secretos para locais secretos se fez com o desplante e a impunidade que os torcionários julgam sempre ter, que o caldo se entornou e transbordou para a opinião pública. Os democratas, afinal, agiam como simples agentes de um estado totalitário, tenebroso e opressor, que não conhece nem admite entraves aos seus desígnios.

E porque as coisas são mesmo assim, veio agora a insuspeita Amnistia Internacional acusar os governos europeus de negarem o seu papel nas rendições e detenções secretas norte-americanas e pedir um inquérito «urgente» e «independente» ao assunto. «Os governos europeus encontram-se num estado de negação e têm vindo a evitar a verdade há demasiado tempo», escreve Amnistia num relatório intitulado «Estado de negação: O papel da Europa nas rendições e detenções secretas».

Certos de que a democracia, o estado de direito e a tal Declaração Universal dos Direitos Humanos não passam de chavões sem sentido – ou conceitos e sentidos apenas aplicáveis no âmbito restrito dos seus interesses próprios – os donos dos povos, cínicos e perversos, continuam a aligeirar a questão, nada fazendo, na prática, para que os valores que dizem defender sejam respeitados. Democratas? Sim, ma non troppo.

Olhamos para mais perto de nós, aqui mesmo à nossa volta, e verificamos que as lojas e as grandes cadeias de distribuição de roupa já começaram a vender produtos com descontos que vão até aos 70%, para compensar a quebra de vendas que a crise económica está a provocar nos bolsos dos consumidores. E a época de saldos só arranca dia 15 de Julho. Aliás, de promoções e vendas ao desbarato vive agora o comércio de retalho todo o ano, e nem mesmo assim assistimos ao aumento do consumo. Se o povo estava de tanga quando Guterres largou isto, como disse Durão, agora, com Sócrates, está de parra… e é se estiver.

No entanto, lemos – e ouvimos dizer – que os artigos e bens de luxo não conhecem a crise. Dos perfumes caríssimos, às jóias; dos melhores uísques, ao caviar; dos relógios de milhares de euros e dos carros topo de gama, aos apartamentos super luxuosos, nada fica por vender. Um desses condomínios, ali para os lados do Campo Pequeno, cujos andares variavam entre os 200 mil e os 900 mil contos (não são euros, meus senhores, são contos!) esgotou rapidamente… os mais caros.

Por aí, o cidadão comum corta no leite, no pão, na roupa e no calçado, nos medicamentos, na água e na luz. Na cultura. No lazer. País feudal? Nada disso. Vivemos em democracia… ma non troppo.

E enquanto a vida assim decorre, nesta cada vez mais apagada e vil tristeza, a Galp atingiu lucros recorde de 160 milhões de euros entre Janeiro e Março. E continua a aumentar o preço dos combustíveis, por enquanto apenas dia-sim, dia-não. Se a Galp fosse, como já foi, uma empresa nacionalizada, nossa, não só venderia os combustíveis mais baratos, como os seus lucros, em vez de servirem para que se esgotassem artigos e bens de luxo, serviriam para termos um bom Serviço Nacional de Saúde, escolas dignas desse nome e investimentos públicos geradores de emprego e bem-estar social. Mas isso seria, logicamente, democracia a mais. Porque, meus amigos, democracia, sempre… ma non troppo

A juntar a isto, saiba-se que no período compreendido entre 2004 e 2007, ou seja, em apenas quatro anos, a banca arrecadou, em Portugal, 13.537 milhões de euros de lucros, tendo pago de imposto (IRC + derrama) somente 2.115 milhões de euros, o que corresponde a uma taxa efectiva de imposto de apenas 15,6%, ou seja, uma taxa muito inferior à legal, que é paga pelas outras empresas, e que é, actualmente, 25% de IRC e 1,5% de derrama. Se a banca tivesse pago a taxa legal, o Estado teria arrecadado, só nestes quatro anos (2004-2007), mais 1.563 milhões de euros de receita fiscal.

Então, se os bancos pagassem, democraticamente, os impostos que pagam as outras empresas – e se os seus lucros fossem orientados para satisfazer parte das necessidades nacionais – Portugal seria um país infinitamente melhor e mais justo. Seria, talvez, um país democrático.

Mas pode lá ser uma coisa dessas! Cada macaco no seu galho, entendamo-nos. Uma sociedade bem estruturada tem os seus ricos, os seus remediados e os seus pobrezinhos. Sempre assim foi, sempre assim há-de ser.

Portanto, nada de exageros. Democracia, sim… ma non troppo.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/06/2008.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

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