23/04/2008

O FEITIÇO E O FEITICEIRO

A notícia é recorrente e relaciona-se com o aumento do endividamento das famílias e, sobretudo, com a sua falta de capacidade para satisfazer os compromissos resultantes desse endividamento.

E antes que os artistas do costume venham dizer que tudo se resume a falta de cabeça e ao facto de haver muita gentinha que dá o passo maior do que a perna, ou que a ânsia consumista leva as pessoas a comprarem bens supérfluos, para tanto empenhando dedos e anéis, quero dizer que, sim senhor, há gente dessa. Sempre houve, há, e haverá. Contudo, para sermos sérios e objectivos, o que se passa, hoje em dia, e explica a amplitude do crédito malparado e sua subida quase meteórica, radica noutra realidade bem mais dolorosa.

Em primeiro lugar, esta onda de incumprimento explica-se porque as condições de vida de milhões de pessoas se agravaram de tal modo, que as responsabilidades que há poucos anos – ou há poucos meses – eram perfeitamente suportáveis, deixaram de o ser. Ou porque os encargos subiram de forma insuportável, ou porque os rendimentos caíram por via do desemprego ou da corrosão do poder de compra. Ou pela conjugação dramática destes dois factores.

Em segundo lugar, porque a sociedade de consumo – esta maravilhosa sociedade de consumo! – encaminhou cientificamente as famílias para o recurso ao crédito, abrindo-lhes a ratoeira do endividamento como única forma de sobreviverem e garantirem níveis de vida minimamente aceitáveis.

De facto, a situação chegou a um ponto tal, que há um número significativo de bens e serviços que só podem ser adquiridos, pelo cidadão comum, através do fatídico endividamento. Exemplos? A habitação, a educação própria ou dos filhos (livros e material didáctico, propinas, deslocações, refeições, etc), determinadas consultas médicas e determinados tratamentos ou intervenções cirúrgicas, próteses oculares e dentárias, ou outros bens de primeira necessidade, como certos electrodomésticos indispensáveis nos dias de hoje, sejam eles o frigorífico, o esquentador ou o fogão. E ninguém me diga que estou a falar de luxos, a menos que defendam que o normal seria vivermos ao nível dos habitantes da Serra Leoa…

Os orçamentos familiares, confrontados com o aumento constante do custo de vida e com as fatídicas políticas de contenção salarial que diariamente lhes corroem o poder de compra, enfrentam, assim, despesas tão comuns como o vestir e o calçar, as deslocações para o trabalho ou para a escola, a electricidade e a água, o telefone e o gás, entre outras que o quotidiano nos impõe (nalguns casos, fato e gravata) como um problema de difícil solução.

É neste contexto – que é a regra – que se explica o recurso ao crédito e, consequentemente, face ao selvático neoliberalismo reinante, a inevitável situação de rotura. O incumprimento.

Há um velho ditado que nos diz que «o diabo tem uma capa com que tapa e outra com que destapa». Na verdade, aqui chegados, começamos a compreender que, de certa maneira, o feitiço começa a virar-se contra o feiticeiro, como o que está a acontecer nos EUA é um bom exemplo. De facto, toda a gente fala da crise norte-americana do imobiliário, do “subprime”, do alastramento dessa crise à Europa e a Portugal, sem dizer, no entanto, que ela resulta da própria natureza predadora do capitalismo. Da sua cega e congénita ânsia devoradora.

Ao oferecer crédito para a habitação a baixos juros, tendo como única garantia o imóvel (é isto o “subprime”), os bancos e as empresas financeiras de vão de escada – ou de crédito pelo telefone, como por aí abundam – mais não fizeram que aliciar uma enorme fatia da população norte-americana para a aquisição de casa a preços relativamente baixos, entrando, assim, numa fatia do mercado que lhes estava a escapar. Como o sistema não se compadece com essa coisa do direito à habitação, nem as taxas de juro se fizeram para outra coisa que não seja aumentar os lucros da agiotagem, o sistema achou que estava na altura de fazer subir as taxas de juro para, deste modo, arrecadar os milhões que imaginavam estar nos bolsos das suas novas vítimas. Ao que parece, as contas saíram-lhe furadas, pois milhões de norte-americanos deixaram de poder cumprir, e lá ficaram os bancos e as financeiras sem o seu dinheiro, mas com milhares de casas vazias e, praticamente, sem valor, já que não havia mercado para elas.

De certo modo, é isto que pode acontecer em Portugal, a continuarem estas políticas assassinas do aperta o cinto. Aliás, já há quem diga que a solução para equilibrar as coisas, em termos de justiça social, seria precisamente ninguém pagar aos agiotas. Asfixiá-los com as cordas com que eles nos asfixiam. Assim como quem diz: «Pagaremos as nossas contas e honraremos os nossos compromissos logo que tenhamos empregos estáveis e ordenados compatíveis com um país civilizado, democrático, membro da União Europeia e respeitador dos Direitos Humanos. Até lá, meus amigos, fiquem com as casas, com as mobílias, com os electrodomésticos. Talvez rendam alguma coisa na Feira da Ladra».

Claro que tudo isto é uma caricatura, um exagero – uma utopia, se quiserem – mas não devemos perder de vista que, de certa maneira, e de forma involuntária, é isso que milhões de famílias fizeram nos EUA. E que milhares de famílias estão a fazer, porque a tal são forçadas, em Portugal. No fundo, é o capitalismo a debater-se com as suas inevitáveis contradições.

A ilustrar o que dissemos – e a ilustrar ainda melhor para quem governam Sócrates e o Partido Socialista – a banca portuguesa continua a acumular lucros e a beneficiar das benesses que o governo lhe concede. Denuncia, a este propósito, o economista Eugénio Rosa:

«Apesar dos compromissos públicos assumidos, quer pelo ministro das Finanças, quer pelo primeiro-ministro, durante o debate do Orçamento do Estado, de que a banca passaria a pagar a mesma taxa de imposto que as restantes empresas, em 2007 isso não aconteceu novamente, tendo-se mesmo reduzido a taxa efectiva de imposto paga pela banca, para apenas 14%».

De facto, e de «acordo com dados divulgados pela própria Associação Portuguesa de Bancos, em 2006, a banca portuguesa obteve 2.800 milhões de lucros e pagou apenas 544 milhões de impostos e taxas, o que correspondeu a uma percentagem de 19%. Em 2007, apesar de ter obtido mais lucros, pois passaram, entre 2006 e 2007, de 2.800 milhões de euros para 2.847 milhões de euros, o imposto pago desceu 28,7%, pois passou de 544 milhões de euros para apenas 388 milhões de euros, o que significou que, em 2007, a percentagem paga fosse apenas de 14%. Se a banca tivesse pago as taxas legais, ou seja, aquelas que têm de pagar nomeadamente as PME, o Estado teria recebido, em 2006 e 2007, mais 564 milhões de euros de IRC e derrama do que recebeu. Portanto, os elevadíssimos lucros da banca continuam a serem financiados à custa do Orçamento do Estado, apesar das promessas socialistas. Também aqui Sócrates diz uma coisa e faz outra, já o que está em jogo são os interesses dos grandes grupos económicos de que este governo está cada vez mais refém e apoia à custa do OE».

Enquanto isto, milhares de portugueses perdem as suas casas, que passaram a não poder pagar. Caem no desemprego e curvam-se em trabalhos precários, sob ordenados miseráveis. Pedem um empréstimo para tratar da boca ou mudar de lentes. Contam os cêntimos, para conseguir ter uma côdea em cada dia que falta até ao fim do mês. E – o que é pior – alguns deles até pensam que as coisas são mesmo assim.

Ah! Já me esquecia! Passam, na próxima sexta-feira, 34 anos sobre o 25 de Abril.

Que ironia, meus senhores. Que ironia.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 23/04/2008.
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