12/03/2008

OS MISERÁVEIS

Vítor Hugo não levará a mal se o título da sua mais célebre obra encimar a crónica de hoje, tanto mais que, de uma maneira ou de outra, os ideais que o levaram a escrever o seu livro são, no essencial, muito parecidos com aqueles que me orientam.

Os miseráveis, no texto imortal de Vítor Hugo, são a gente sem poder nem direitos, as vítimas de uma sociedade profundamente desigual, cuja única razão de existir é contribuir para encher os cofres dos poderosos, sujeitando-se, para tal, a todo o tipo de sofrimentos e humilhações, sem que isso possa parecer injusto ou imoral. Pior: reagir contra esta violência legal é que seria crime, pois «a ordem natural das coisas», com ou sem toque divino, não pode ser questionada.

Mas os miseráveis são também, de forma implícita, os que sustentam essa sociedade opressiva e bestial, impondo a sua força estribada em leis feitas de acordo com os seus interesses e tendo, como seus agentes executores – os seus esbirros – aqueles que, dos oprimidos vindo, se vendem (ou se rendem) e se transformam na mão visível da violência legal.

Significa isto que temos dois tipos de miseráveis. Os miseráveis em termos materiais, porque na miséria vivem e, em consequência, não passam de párias sujeitos a todo o tipo de abusos e excessos. E os miseráveis morais, que criam, mantêm e fomentam este tipo de sociedade, obscenamente desigual, dela beneficiando escandalosamente, como se tal esbulho, e as suas consequências, devessem ser acatadas sem recalcitrar.

Era assim no tempo de Vítor Hugo (a sua obra foi escrita em 1862), é assim no tempo de hoje. Como então, aí temos, de um lado, os senhores do dinheiro e a classe política profundamente unidas, como átomos da mesma molécula, fabricando leis à medida dos seus interesses, que querem consolidar e perpetuar. E, do outro lado, a massa imensa dos que labutam, sujeitos sempre ao arbítrio dessa elite instalada, como se, de entre os seres humanos, uns o fossem mais do que outros.

Pelo meio, uma inconfundível turba de esbirros, sempre prontos a fazer cumprir as leis, muitos deles apenas pelo puro gozo de terem um chicote nas mãos. E poderem utilizá-lo.

E assim se vive em Portugal, onde as parecenças com a época de Vítor Hugo se acentuam todos os dias. Exemplos não faltam. Vamos a alguns.

Quem assiste ao programa Fátima, nas manhãs de segunda a sexta-feira, na SIC, depara-se com casos interessantes e significativos. Um deles, conta a saga de um garoto que, padecendo de grave doença, encetou, em Cuba, o processo da sua recuperação motora, já que, em Portugal, os miseráveis que governam, não só não lhe oferecem a qualidade de tratamento que em Cuba lhe disponibilizam, como lhe negam apoio para as suas deslocações à pátria de Fidel e de Che Guevara.

Então, é através do programa da Fátima Lopes que se tenta mobilizar a sociedade civil para conseguir reunir o dinheiro necessário às viagens e tratamentos – ou seja: é ali que a família do garoto vai estender a mão à caridade – porque o governo tem mais em que pensar, e a saúde dos filhos da plebe, dos miseráveis, não consta do rol das suas preocupações.

Aliás, no programa de que vos falo, é comum surgirem situações desta natureza, pois as famílias, aflitas com problemas financeiros ou de saúde, a ele recorrem com frequência, na esperança de que os donativos de particulares surjam e aliviem os seus dramas.

Outro caso ali apresentado, conta-nos a história de um pequeno que sofreu queimaduras terríveis, ficando completamente desfigurado. Está vivo graças à coragem de um irmão, que o arrancou, já feito tocha, das labaredas que o consumiam. Ora, o garoto precisa agora de várias operações plásticas que lhe reconstruam minimamente a face, para que possa, enquanto criança e, depois, como adulto, ter uma vida normal, sem traumas psicológicos – ou com o mínimo deles.

Acontece, porém, que o governo não comparticipa este tipo de intervenções, pois considera-as, cegamente, intervenções estéticas, logo supérfluas e, portanto, desnecessárias. Resultado: lá vai a família, em desespero de causa, expor o caso na praça pública, para que, sensibilizando os espectadores, beneficie dos donativos (das esmolas) que substituam as leis miseráveis que os miseráveis que governam vão produzindo.

Seguindo esta linha de raciocínio salto para outro caso ilustrativo da situação miserável a que chegámos.

Sabemos que os políticos aprovaram leis que lhes garantem suculentos ordenados e nutritivas reformas. Os mesmos – os mesmíssimos – políticos que aprovam, para os milhões de cidadãos que dizem servir, governando-os, baixos salários e reformas cada vez mais magras e difíceis. Todos sabemos, também, que aumentaram a idade da reforma e introduziram formas de cálculo que diminuem a reforma dos miseráveis que trabalham para sobreviver, quando chegar a hora de descansar um pouco. Se ainda forem vivos…

O exemplo que vos dou não passa disso mesmo: um exemplo. E se Marques Mendes é a figura citada, não significa que contra ele tenha um acinte especial, bem pelo contrário, até lhe acho alguma piada.

Ora, Marques Mendes acabou a alcançar a sua reforma. Não aos sessenta e cinco anos de idade, não ao fim de trinta e tal anos de esforçado trabalho, não uns miseráveis duzentos e poucos euros de pensão. Nada disso. Marques Mendes, que não é mais nem menos que toda a cambada de políticos que já se reformou à custa da política (e das tetas desta espécie de democracia), leva uma boa maquia para casa. De facto, aos 50 anos e com 20 anos de descontos como deputado, o novo pensionista vai receber aquilo a que tem direito, ou seja, 2.905 euros mensais para o resto da sua vidinha.

Mas o que Marques Mendes – e a restante corja de miseráveis que fazem leis – aprovaram para aqueles que deveriam defender (e que lhes pagam os ordenados e estas belas reformas) é bem diferente. Para esses miseráveis – os trabalhadores comuns – suas excelências ditam que devem trabalhar até aos 65 anos e ter descontado sem falhas toda a vida, se quiserem obter uma reforma de… 80% da remuneração média da sua carreira contributiva.

Ou seja: uma miséria para os miseráveis do costume. Um fartote para os miseráveis que vivem da miséria que espalham pelo país.

Não posso acabar sem me referir à grandiosa manifestação do dia 8, quando mais de cem mil professores abriram brechas nas muralhas da prepotência, arrogância e desconchavo de Sócrates e da sua sinistra ministra da Educação.

Por muito que isso doa aos miseráveis que julgam que as coisas nunca mudam, este mundo, como já Luís de Camões sabia, é mesmo «composto de mudança».

Vai devagar. Mas vai.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 12/03/2008.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

vai para onde?
Para onde o PC quer que vá?
Uma mani...onde os PC se juntaram aos da direita? e aos professores,lideres sindicais, professor(???) que há 18 anos que não dá aulas?

12/3/08 6:18 da tarde  

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