26/03/2009

O FEITIÇO E O FEITICEIRO

Os feiticeiros deste país – e deste mundo – querem ter tudo. Querem ter sol na eira e chuva no nabal. Mas tal como é impossível que dois corpos ocupem, ao mesmo tempo, o mesmo espaço, também esta pretensão dos senhores da política e dos seus donos, os distintos senhores capitalistas, não é concretizável. Ou raramente o é. A eira e o nabal estão sempre perto demais, e só por um milagre da Natureza as coisas se conjugam favoravelmente.

Durante algum tempo, foi possível pagar baixos salários e baixas pensões e, ao mesmo tempo, conseguir-se ir enchendo os cofres das empresas, dos bancos e do Estado. Depois, quando os baixos salários e pensões se transformaram em salários e pensões de penúria, por via de não serem actualizados de acordo, no mínimo, com a inflação real, os governos e os senhores capitalista, para continuarem a espremer a maralha, inventaram o crédito fácil. A qualquer hora, de qualquer maneira.

Agora, esgotado o recurso, com o carapau mais seco que uma palha ao sol de Verão, aí estão eles de mãos na cabeça e crise na boca. A rapaziada, esmifrada até ao tutano, só compra o essencial – às vezes, nem isso – e vê-se grega para pagar o dinheiro que a levaram a pedir emprestado. Quando paga.

Assim, não se vende tudo o que se fabrica, não se paga tudo o que se deve, não se gasta um cêntimo mal gasto. A economia definha, a produção estagna ou reduz-se, os stocks amontoam-se, as fábricas e as lojas fecham, o desemprego sobe em flecha e, em consequência, os cofres do Estado, não se enchem como eles esperavam. Qualquer dia, nem dinheiro há para continuar a encher os alforges dos banqueiros. Aqui d’el Rei!, que vem aí o fim do mundo, gritam.

A provar o que digo, aí estão notícias recentes, dizendo que as receitas fiscais do Estado estão a afundar, tendo caído 9,4 milhões de euros por dia, um total de 558,4 milhões de euros em Janeiro e Fevereiro últimos, face ao período homólogo. Só a quebra no IVA traduziu-se numa perda de 4,9 milhões por dia, o que faz sobressair as dificuldades da economia nacional.

Realmente, a receita de IVA caiu um total de 289 milhões de euros, o que demonstra que as empresas estão a vender menos do que no início de 2008. Outro indício das dificuldades das empresas, foi a quebra de 138,8 milhões de euros no Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC). Curiosamente, só o IRS subiu, em relação a 2008.

Contas feitas, como as despesas do Estado mantêm o ritmo de crescimento, o saldo final está em 907 milhões de euros negativos, o que significa que o défice aumentou mais de 12 vezes face aos dois primeiros meses do ano passado, o que está a deixar o ministro das Finanças preocupado. Não sei porquê. Eu, que não sou economista – nem sequer licenciado pela Universidade Independente – há muito que aqui disse que isto ia acontecer. Aliás, até Karl Marx, esse maldito bruxo de ideias verdadeiramente socialista, falecido em 1883, adivinhou – e escreveu – o que hoje se está a passar. Se Teixeira dos Santos alguma vez pensou que as políticas económicas que tem apadrinhado e defendido com unhas e dentes iam ter outro resultado, desculpem-me a linguagem pouco ortodoxa, é um parvo chapado.

Claro que ele não é parvo. Pode ser o ministro das finanças mais incompetente da Europa, mas parvo, o que se diz mesmo parvo, ele não é. Faz-se de parvo, o que é diferente. Ele pouco se rala com o agravamento do défice, pois ele já sabe como resolver o problema. Quando a crise se atenuar, aí estará ele – ou outro igual a ele, pois lêem todos pela mesma cartilha, que não é a de Karl Marx, como se percebe à vista desarmada – a dizer que é preciso recompor o défice, entretanto agravado. E vá de manter a crise para a rapaziada, agora, e de novo, em nome do equilíbrio das contas públicas. Estão a perceber, ou querem que faça um desenho?

Por isso, alguns papagaios do capitalismo reinante já aí estão a dizer que é preciso sanear as contas públicas após a recessão, como afirmou o economista Vítor Gonçalves. Mas a mais escandalosa afirmação, nos últimos dias, veio de um certo senhor, que já foi ministro das finanças e governador do Banco de Portugal, um certo Silva Lopes, que defendeu, tal o actual governador, o senhor Vítor Constâncio, ser necessário, para enfrentar a crise actual, congelar os salários da generalidade dos trabalhadores portugueses.

Eu não quero ofender ninguém, mas vou explicar quem é o senhor doutor Silva Lopes, como se quem me lê ou ouve fosse mesmo muito burro.

O senhor doutor Silva Lopes foi presidente do Conselho de Administração do Montepio até a Abril de 2008, portanto durante apenas quatro meses desse ano. Lê-se, no entanto, no Relatório e Contas de 2008, do Montepio que o presidente (o tal senhor doutor Silva Lopes) recebeu, por quatro meses de gestão, 410.249,21 €, o que dá 102.562,30 € por mês, ou seja, mais de 20.500 contos mensais. Saliento, agora, que a remuneração base média mensal dos trabalhadores portugueses era, em 2008, de apenas de 891,40€. Ora, para amanhar o que amanhou, mais o que adiante vou dizer, é preciso ser-se um grande desavergonhado, para afirmar que os que ganham uma miséria por mês devam ver os seus ordenados congelados. Mas vergonha, ao contrário das mordomias, é coisa que não abunda para os lados destes autênticos vampiros.

E o que eu vou dizer a respeito do senhor doutor Silva Lopes, para além do que já atrás disse, é que ele, tendo exercido as funções de presidente do Montepio durante quatro aninhos, vai receber, por esse lapso de tempo, uma reforma de 4.000 € por mês, a juntar às que tem do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Depósitos, onde também exerceu o seu mister. Isto, sem contarmos com o que escorrerá de ter trabalhado para o FMI, Banco Mundial e ter sido deputado à Assembleia da República e governante.

Mas o mais giro disto tudo, é que o senhor doutor Silva Lopes se reformou do Montepio alegando que já tinha 74 anos e precisava de descansar. Coisa merecida para quem tanto labutou e tantas dificuldades deve ter passado ao longo da vida. Mas, se assim foi, porque carga de água aceitou o cargo de administrador da EDP Renováveis, onde recebe um ordenado que, por enquanto, ainda é segredo dos deuses?

É este, então, o homem que propõe o congelamento das remunerações da maioria dos trabalhadores portugueses. Claro que nunca lhe passa pela cabeça incluir-se nessa maioria, nem – muito menos – acabar com o regabofe do qual é um enormíssimo beneficiário!

Ao alto da minha ignorância, recordo ao excelso doutor Silva Lopes, que o congelamento dos salários só poderia trazer ainda um maior agravamento das desigualdades. Primeiro, porque seria uma medida socialmente injusta (agravaria a situação daqueles que já vivem com grandes dificuldades, e beneficiaria os grandes accionistas das empresas, que ficariam com mais lucros para receber), para além de ser, tecnicamente, um erro crasso, pois reduziria ainda mais a procura interna, provocando mais falências e mais desemprego.

Pois foi: deixámos os feiticeiros à solta, e é o que se vê. É verdade que o feitiço se volta, de quando em vez, contra os feiticeiros, mas devemos dar uma ajuda, não é?

É que se não dermos, eles até pensam que têm mesmo poderes sobrenaturais. Na verdade, só têm o poder que nós lhes dermos. Ou deixarmos ter.


Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 25/03/2009.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

1 Comments:

Anonymous comunista said...

ficaram bem esplicitos os teus sentimentos de revolta...

5/4/09 11:50 da manhã  

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