20/05/2008

REFLEXÕES XXXIV

DOIS LOBOS FAMINTOS E UM CHAPEUZINHO VERMELHO

Uma ideia essencial dava voltas na minha cabeça desde o tempo em que era socialista utópico. Partia do nada com as simples noções do bem e do mal que incute a sociedade em que cada qual nasce, cheio de instintos e carente de valores que os pais, especialmente as mães, começam a semear em qualquer sociedade e época.

Como não tive preceptor político, a sorte e o acaso foram componentes inseparáveis da minha vida. Adquiri uma ideologia por minha própria conta desde o instante em que tive a possibilidade real de observar e meditar nos anos de infância, adolescência e de jovem estudante. A educação converteu-se para mim no instrumento por excelência de uma mudança na época em que tive que viver, da qual dependeria a própria sobrevivência de nossa frágil espécie.

Depois de uma longa experiência, o que penso hoje sobre o delicado tema é absolutamente coerente com esta ideia. Não preciso pedir desculpas, como preferem alguns, por falar a verdade, apesar de ser dura.

Há mais de dois mil anos, Demóstenes, famoso orador grego, defendeu com veemência nas praças públicas uma sociedade, onde 85% das pessoas eram escravas ou cidadãos que careciam de igualdade e de direitos como algo natural. Os filósofos concordavam com esse ponto de vista. Daí surgiu a palavra democracia. Não se podia exigir mais deles no seu tempo. Actualmente, que se dispõe de um enorme caudal de conhecimentos, as forças produtivas multiplicaram-se inúmeras vezes e as mensagens, através da mídia, são elaboram para milhões de pessoas; a imensa maioria, farta da política tradicional, não quer ouvir falar dela. Os homens públicos carecem de confiança quando os povos mais precisam dela diante dos perigos que pairam sobre eles.

Quando da desintegração da URSS, Francis Fukuyama, cidadão norte-americano de origem japonesa, nascido e educado nos Estados Unidos e diplomado numa universidade desse mesmo país, escreveu o livro “O fim da história e o último homem”, o qual, com certeza, muitos conhecem, e foi muito promovido pelos dirigentes do império. Tinha-se convertido num falcão do neoconservadorismo e promotor do pensamento único.

Segundo ele, apenas ficaria uma classe, a classe média norte-americana; os demais, penso eu, seríamos condenados a sermos mendigos. Fukuyama foi partidário decidido da guerra contra o Iraque, assim como o vice-presidente Cheney e seu selecto grupo. Para ele, a história acaba no que Marx via como "o fim da pré-história".

Na cerimônia inaugural da Cúpula América Latina e Caribe - União Europeia realizada no Peru, na passada semana, falou-se em inglês, alemão e outras línguas europeias, sem as televisões traduzirem para o espanhol ou o português trechos essenciais dos discursos, como se no México, Brasil, Peru, Equador e outros, os indígenas, negros, mestiços e brancos ― mais de 550 milhões de pessoas, na sua imensa maioria pobres ― falassem inglês, alemão ou outro idioma estrangeiro.

Contudo, menciona-se agora com louvor a grande reunião de Lima e a sua declaração final. Ali, entre outras questões, insinuou-se que as armas que adquire um país ameaçado de genocídio pelo império, como foi Cuba há muitos anos e actualmente é a Venezuela, não se diferenciam eticamente das empregadas pelas forças repressivas para reprimir o povo e defender os interesses da oligarquia, aliada a esse mesmo império. Não se pode converter a nação numa mercadoria a mais, nem comprometer o presente e o futuro das novas gerações.

A 4ª Frota norte-americana, com certeza, não é mencionada nos discursos televisionados daquela reunião como força intervencionista e ameaçadora. Um dos países latino-americanos ali representados acaba de fazer manobras combinadas com um porta-aviões dos Estados Unidos do tipo Nimitz, dotado com todo o tipo de armas de extermínio em massa.

Nesse país, há uns anos, as forças repressivas fizeram desaparecer, torturaram e assasinaram dezenas de milhares de pessoas. Os filhos das vítimas foram expropriados pelos defensores das propriedades dos grandes ricos. Os seus principais líderes militares cooperaram com o império nas suas guerras sujas. Confiavam nessa aliança. Por que cair de novo na mesma armadilha? Apesar de ser fácil inferir o país aludido, não desejo mencioná-lo para não magoar uma nação irmã.

A Europa, que nessa reunião foi quem falou mais alto, é a mesma que apoiou a guerra contra a Sérvia, a conquista do petróleo do Iraque pelos Estados Unidos, os conflitos religiosos no Oriente Próximo e Médio, os cárceres e pousos secretos, e os planos de torturas horríveis e assassinatos projectados por Bush.

Essa Europa participa com os Estados Unidos nas leis extraterritoriais que, violando a soberania de seus próprios territórios, incrementam o bloqueio contra Cuba, obstaculizando o fornecimento de tecnologias, de componentes e, inclusive, de medicamentos ao nosso país. Os seus meios publicitários associam-se ao poder mediático do império.

O que eu disse na primeira reunião da América Latina com a Europa, efectuada há nove anos no Rio de Janeiro, mantém toda a sua vigência. Nada mudou desde então, excepto as condições objectivas, que tornam mais insustentável a atroz exploração capitalista.

O anfitrião da reunião quase exasperou os europeus, quando, no encerramento, mencionou alguns pontos expostos por Cuba:

1. Cancelar a dívida da América Latina e do Caribe.

2. Investir a cada ano nos países do Terceiro Mundo 10% do que gastam nas actividades militares.

3. Pôr fim aos enormes subsídios à agricultura, que concorrem com a produção agrícola dos nossos países.

4. Destinar à América Latina e ao Caribe a quantia correspondente ao compromisso de 0,7% do PIB.

Pelos rostos e os olhares, observei que os líderes europeus engasgaram durante uns segundos. Mas, por que se afligirem? Em Espanha seria ainda mais fácil proferir discursos vibrantes e maravilhosas declarações finais. Tinha-se trabalhado muito. Vinha o banquete. Não havia crise alimentar na mesa. Sobejavam as proteínas e os licores. Faltava apenas Bush, que trabalhava, incansavelmente, pela paz no Oriente Médio, como é habitual nele. Estava dispensado. Viva o mercado!

O espírito dominante nos ricos representantes da Europa era a superioridade étnica e política. Todos tinham pensamento capitalista e consumista burguês, e falaram ou aplaudiram em nome deste. Muitos levaram consigo os empresários que são a base e o sustentáculo dos "seus sistemas democráticos, garantes da liberdade e dos direitos humanos". É preciso ser especialista na física das nuvens para comprendê-los.

Actualmente, os Estados Unidos e a Europa concorrrem entre eles e um com o outro pelo petróleo, pelas matérias-primas essenciais e pelos mercados, ao qual agora se acrescenta o pretexto do combate ao terrorismo e ao crime organizado que eles mesmos criaram com as vorazes e insaciáveis sociedades de consumo.

Dois lobos famintos disfarçados de vovozinhas boas, e um Chapeuzinho Vermelho.


Fidel Castro Ruz
18 de Maio de 2008

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