20/01/2008

REFLEXÕES XXXI

O PRESENTE DOS REIS MAGOS

Os cabogramas anunciaram-no com antecedência. No dia 6 de Janeiro informavam que Bush viajaria para o Médio Oriente logo a seguir ao seu cristão descanso de Natal. Visitaria as terras dos muçulmanos, de outra religião e cultura à qual os europeus que viraram cristãos declararam a guerra, por infiéis, no século XI da nossa era.

Os próprios cristãos mataram-se uns aos outros, tanto por motivos religiosos quanto por interesses nacionais. Parecia que tudo tinha sido vencido pela história. Ficavam as crenças religiosas que deviam ser respeitadas, as suas lendas e tradições, fossem ou não cristãs. Neste lado do Atlântico, mesmo como em muitas outras partes do mundo, as crianças ansiosas estavam à espera de cada 6 de Janeiro procurando rações suficientes para os camelos dos Reis Magos. Eu também experimentei essa sensação de esperança durante os primeiros anos da minha vida, pedindo o impossível aos afortunados Reis, com as mesmas ilusões com as quais alguns compatriotas esperam milagres da nossa perseverante e digna Revolução.

Não possuo a capacidade física necessária para conversar diretamente com os vizinhos do município onde fui proposto candidato para as eleições de domingo. Faço o que puder: escrevo. Para mim é uma nova experiência: não é o mesmo falar do que escrever. Hoje, que disponho de mais tempo para me manter informado e meditar sobre aquilo que vejo, apenas me dá para escrever.

O bom é esperado, o mau surpreende e desmoraliza. Preparar-se para o pior, é a única forma de se preparar para o melhor.

Parece não real ver Bush, o conquistador das matérias-primas e dos recursos energéticos de outros povos, impondo normas ao mundo sem se importar pelas centenas de milhares ou milhões de pessoas que morrem e pela quantidade de cárceres clandestinos e centros de torturas que devem ser criados para atingir os seus objetivos. “Sessenta ou mais escuros cantos do planeta” devem ficar à espera de ataques preventivos ou inesperados. Não fechemos os olhos, Cuba é um desses cantos escuros. Assim o disse textualmente o chefe do império e fiz com que a comunidade internacional reparasse nisso mais de uma vez.

Em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, a poucas milhas do Irã, a AP informa que “O presidente estadunidense George W. Bush disse no domingo que o Irão ameaça a segurança do mundo, e que os Estados Unidos e os seus aliados árabes devem unir-se para enfrentar o perigo antes que seja tarde demais”.

Bush acusou o governo de Teerão de “financiar terroristas, debilitar a paz no Líbano, e de enviar armas à milícia religiosa afegã Talibã. Acrescentou que o Irão tenta intimidar os seus vizinhos com uma retórica alarmante, desafia as Nações Unidas e desestabiliza totalmente a região ao não querer esclarecer as intenções do seu programa nuclear”.

Bush disse “as ações do Irão ameaçam a segurança das nações em toda a parte. Portanto os Estados Unidos fortalecem os nossos compromissos de segurança assumidos há muito tempo com os nossos amigos no golfo Pérsico e convocam os seus amigos para enfrentarem este perigo”.

Bush falou no hotel Emirates Palace, construído por um custo de 3 bilhões de dólares e onde uma suíte custa 2.450 dólares por cada noite. Tem um quilometro de comprimento e uma praia de areia branca de 1,3 quilômetros de comprimento. Segundo Steven Pike, um porta-voz da embaixada dos Estados Unidos nos Emirados Árabes Unidos, cada grão da areia dessa praia foi importado da Argélia.

Todo o mundo sabe que ele quer é a guerra contra o Irão, é sua guerra. Promete, além disso, que as tropas norte-americanas permanecerão pelo menos mais 10 anos no Iraque.

O pior é a incapacidade de rectificar, dos principais candidatos dos partidos chamados a sucedê-lo. Nenhum deles se atreve a roçar com uma pétala de uma rosa essa prática imperial, sob o pretexto de lutar contra o terrorismo, engendrado pelo próprio sistema e o seu colossal e insustentável consumismo, pretendendo o impossível: crescimento sustentável, emprego total e sem inflação.

Esses não foram os sonhos de Martin Luther King, de Malcolm X e de Abraham Lincoln, nem de nenhum dos grandes sonhadores que a humanidade teve ao longo da sua azarada história.

Aquele que tiver tempo para ler e analisar as notícias que chegam através da Internet, cabogramas e livros, pode comprovar as contradições às quais foi levado o mundo.

Num artigo publicado pelo jornal El País, órgão de imprensa espanhola que faz referência ao tema dos preços dos alimentos e ao combustível. Escrito por Paul Kennedy, professor de Historia e diretor de Estudos Internacionais sobre Segurança na Universidade de Yale, um dos intelectuais de maior influência nesse país, o mesmo assevera que “o petróleo é o maior elemento de dependência que têm os Estados Unidos a respeito das forças externas”.

“Em meados do século XVIII, a Grã-Bretanha possuía a maior indústria de construção de veleiros do mundo. Contudo, ao mesmo tempo em que os seus estaleiros construíam centenas e inclusive milhares de veleiros por ano, uns inventores ingleses criavam a máquina de vapor, que produzia enormes quantidades de energia garantida pelas jazidas especialmente betuminosas do sul de Gales. O motor de vapor e o carvão impulsionaram o desenvolvimento do império britânico durante mais 150 anos”.

Mais adiante salientava o ponto de vista que mais nos interessa: a interconexão cada vez maior entre o petróleo e os alimentos. As razões são muito bem conhecidas: a enorme demanda energética entre as grandes economias asiáticas e a incapacidade dos países mais ricos — os Estados Unidos, o Japão e a Europa — de reduzirem seu consumo.

“Porém também aumenta a demanda mundial de soja, sobretudo por causa do aumento do consumo na Ásia. As dezenas de milhões de porcos que há na China devoram uma incrível quantidade de soja durante o ano. Os preços futuros da soja são 80% superiores neste ano (dezembro de 2007) aos do ano passado (2006)”.

“Ninguém pode estar seguro, mas o lógico é que o crescimento contínuo da população mundial e o aumento das rendas reais para mais de 2.000 milhões de pessoas nos últimos anos se traduzam numa demanda cada vez maior de proteínas — mais carne bovina, mais porco, mais frango, mais peixe — e, por conseguinte, mais cereal para alimentar os animais”.

O professor de Yale poderia ter acrescentado: mais ovo e mais leite, visto que as suas produções precisam de consideráveis quantidades de ração. Porém um bocado mais adiante faz referência a um artigo publicado no The Economist, principal órgão das finanças européias, qualificando-o de “excelente, muito detalhado e aterrador”, intitulado O fim da comida barata. “A revista começou o seu índice de preços dos alimentos nada menos que em 1845. O índice de preços dos alimentos é o maior em 162 anos”.

O Brasil, que já se auto-abastece de petróleo e possui abundantes reservas, sem dúvida poderá fugir desse dilema. Erigido sobre um pequeno planalto que flutua entre 300 e 900 metros de altura, possui 77 vezes a superfície de Cuba. Essa irmã república desfruta de três climas diferentes. Ali são cultivados quase todos os alimentos. Não é açoitada por furacões tropicais. Junto da Argentina poderiam ser tábuas de salvação para os povos da América Latina e do Caribe, incluindo o México, embora jamais garantia de segurança para eles, porque estão à mercê de um império que não admite essa união.

A escritura, como muitas pessoas sabem, é um instrumento de expressão que carece da rapidez, do tono e da mímica da linguagem falada, que não utiliza signos. Utiliza varias vezes mais do escasso tempo disponível. A vantagem da escritura é que pode ser feita numa hora qualquer do dia e da noite, mas não sabes que pessoas vão lê-la, muito poucos podem resistir à tentação de melhorá-la, incluir o que não disserem e riscar parte do já dito; às vezes a gente sente a vontade de deitá-la no lixo por não ter o interlocutor na frente. Durante toda a minha vida transmiti idéias sobre os sucessos tal como os via, desde a mais escura ignorância até hoje em que disponho de maior tempo e das possibilidades de observar os crimes que são cometidos contra o nosso planeta e a nossa espécie.

Aos revolucionários mais jovens, recomendo especialmente exigência máxima e disciplina férrea, sem ambição de poder, auto-suficiência, nem vanglórias. Cuidar-se de métodos e mecanismos burocráticos. Não se apoiar em simples lemas. Ver nos procedimentos burocráticos o pior obstáculo. Usar a ciência e a computação sem cair na linguagem tecnicista e ininteligível de elites especializadas. Manter a sede do conhecimento, a constância, os exercícios físicos e também mentais.

Na nova era em que vivemos, o capitalismo não serve mesmo nem como instrumento. É como uma árvore com raízes podres da qual só brotam as piores formas de individualismo, de corrupção e de desigualdade. Também não se deve dar nada de presente aos que podem produzir e não produzem ou produzem pouco. Devemos premiar o mérito daqueles que trabalham com as suas mãos ou a sua inteligência.

Conseguimos universalizar os estudos superiores, então devemos universalizar o trabalho físico simples, que pelo menos ajuda a realizar parte dos infinitos investimentos que todos demandam, como se existisse uma enorme reserva de divisas e de força de trabalho. Cuidem-se especialmente daqueles que inventam empresas do Estado sob qualquer pretexto e depois administram os fáceis lucros como se tivessem sido capitalista toda a vida, semeando egoísmo e privilégios.

Entretanto, se não se tomar consciência dessas realidades, nenhum esforço poderá ser realizado para “impedir a tempo”, como disse Martí, que o império ao qual viu surgir porque viveu nas suas entranhas, destrua os destinos da humanidade.

Ser dialéticos e criadores. Não há mais alternativa possível.

Agradeçamos a Bush o seu papel de Rei Mago, visitando o lugar onde nasceu o filho do carpinteiro José, se alguém conhece o lugar exacto do humilde presépio onde nasceu o Nazareno. Nesta ocasião, o chefe do império leva como presente aos países árabes dezenas de milhares de milhões de dólares para comprar armas provenientes do complexo militar industrial, e, ao mesmo tempo, dois dólares por cada um dos que fornece a estes para armar o estado do Israel, onde a agência das Nações Unidas que trata o tema garante que 3,5 milhões de palestinos foram privados dos seus direitos o expulsos desse território.

O seu instrumento obsessivo é ameaçar o mundo com uma guerra nuclear. Só ele é capaz de levar consigo esse Presente dos Reis Magos.


Fidel Castro Ruz
14 de janeiro de 2008

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