16/01/2008

ESQUERDA MODERNA, OU DIREITA ANTIGA?

O Banco Alimentar Contra a Fome é uma coisa que existe, mas não deveria existir. Porquê? Porque a existência de gente com fome, em pleno século XXI, num país europeu que arrota novos aeroportos e TêGêVês, e que se permite conceder a um cidadão com vários e copiosas fontes de rendimento, perfeitamente válido e apto para o trabalho, uma reforma de 3.600 contos, por apenas 18 meses como gestor numa empresa do Estado, ou ordenados e futuras reformas de luxo ao governador do seu Banco Central, é algo que a moral recusa, a inteligência não entende e a decência condena.

E não deveria existir, principalmente, porque o senhor «engenheiro» que ocupa o lugar de primeiro-ministro (melhor dizendo: de presidente do conselho de ministros), se diz socialista e de esquerda, embora esclareça que se trata de esquerda, sim, mas… «moderna».

Mas a verdade é que vivemos num país onde 500 famílias detêm a maior fatia da riqueza nacional e os bancos acumulam lucros a um ritmo nunca visto. Com o mesmo ritmo – isto é: a uma velocidade alucinante – os pobres descem aos patamares da miséria e os remediados passam a pobres. A grande maioria da população, nos últimos 12 anos – mas com maior intensidade nos últimos 2 anos correspondentes ao consulado socratiano – todos os dias empobrece e percebe que o futuro vai ser cada vez pior. Na realidade, nada disto me parece compatível com democracia, socialismo e esquerda, leve ela as etiquetas que lhe quiserem pôr.

Já que falei no Banco Alimentar Contra a Fome (cuja simples existência é, por si só, a prova da falência das políticas em curso nas chamadas democracias dominadas pelo capital financeiro), soube, há dias, que a crise é de tal ordem que «há médicos e professores a pedirem ajuda para dar de comer aos filhos».

A notícia saiu no insuspeito Expresso, num excelente trabalho de Raquel Moleiro e Isabel Vicente, e transcreve declarações de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, que denuncia a existência dos chamados «novos pobres», saídos de uma classe média sobre-endividada.

Deixem-me ler parte do texto:

«Manuela, 33 anos, hesitou antes de escrever aquele “e-mail” para o Banco Alimentar Contra a Fome. E mesmo enquanto o redigia, não tinha ainda a certeza de, no fim, ter coragem de carregar no botão de enviar.

Ela, bacharel em Relações Internacionais, quadro de um ministério, casada com um professor de educação física, ex-atleta olímpico. Mãe de uma bebé com cinco meses, tinha agora de pedir ajuda para alimentar a família. O marido que ficou sem emprego, um salário de 2000€ que desapareceu no mês em que festejaram a gravidez, a renda da casa que foi falhando vezes de mais, o cartão de crédito gasto até ao limite, o apartamento trocado por um quarto, e nem assim a comida chegava à mesa. "No dia em que enviei o e-mail faltavam três semanas para receber. e só tinha 80€", explica. "Havia para a bebé, mas nós íamos passar fome".

O caso tem um mês. Ana Vara, assistente social do BACF, ligou a Manuela mal leu o pedido. E disse-lhe o que tanto tem repetido ultimamente: “Não tenha vergonha, não é a única”. “Nos últimos quatro meses, mais que duplicaram os pedidos directos ao banco alimentar. E há cada vez mais casos de classe média”, garante Isabel Jonet. A directora do BACF chama-lhes "os novos pobres": empregados, instruídos, socialmente integrados, mas, ainda assim, vítimas da pobreza e até da fome. Nos últimos três meses, chegaram ao banco alimentar de Alcântara 250 casos, 30% dos quais se enquadram nesta nova categoria. E em todos há pontos transversais: mais mulheres, muitas mães, desemprego inesperado, rupturas familiares, e sempre sobre-endividamento.

(...) As famílias tradicionalmente carenciadas aparecem no banco alimentar, pedem olhos nos olhos. Os novos pobres gritam por ajuda, envergonhadamente, através do correio electrónico.

Como Luciana, médica, cujo desemprego súbito do marido fez ruir a estrutura económica do lar de nove filhos Sem ele saber, sem o magoar de vergonha, pediu apoio alimentar para uma casa onde nunca tinha faltado nada».

Por este breve excerto da reportagem do Expresso, podemos ver o que por aí vai.

Mas se as coisas vão mal para a generalidade dos portugueses, cuja capacidade de reacção é tradicionalmente lenta e mole, também, neste dealbar do ano de 2008, começam a azedar para os lados do «engenheiro» feito à pressa.

Depois da «Margem Sul jamais», veio o Ota nunca mais, e os dois estarolas – Sócrates e Mário Lino – a coincidirem no descaramento de dar o dito por não dito, como se não tivessem sido obrigados a evitar o erro enorme – e caríssimo – de construir o novo aeroporto num local de todo inapropriado. Humilhado e ridicularizado, Mário Lino não se demitiu nem foi demitido, porque Sócrates, como todos os iluminados absolutistas, não sabe o que é moral ou senso comum.

Depois, um dos muitos matraquilhos que pululam no governo, um génio capaz de meter Albert Einstein num chinelo, e que é secretário de Estado não sei do quê – nem me interessa – decidiu que os retroactivos do mês de Dezembro, relativos aos aumentos das pensões dos reformados e pensionistas, seriam pagos em míseras prestações (algumas de 68 cêntimos), ao longo de 14 meses, não fossem os pobres desgraçados estoirar o dinheiro nos casinos ou casas de alterne. Perante o ridículo da situação, que muitos julgaram não passar de mera brincadeira ou má-língua dos perigosos e subversivos opositores do regime democrático (que Sócrates interpreta como ninguém), lá veio o governo, atabalhoadamente meter marcha atrás, e, como quem dá uma esmola com dinheiro roubado, dizer que, enfim, sempre pagarão tudo no mês que vem.

Se o ridículo matasse, Sócrates, os ministros e a troupe «socialista» que comanda (isto é: a «esquerda moderna» em peso) estariam todos no Panteão Nacional, não pelos altos méritos dos seus feitos, mas como monumento indelével à pulhice política e à credulidade de um povo que ainda não aprendeu a tomar conta do seu destino.

No meio deste circo, um escândalo enorme parece estar escondido sobre o já de si grande escândalo do BCP. Fazendo rir o pagode – como compete a uma troupe que se preze – Sócrates garante que o Governo em nada interferiu na escolha dos futuros administradores do BCP. Deixaríamos de lado a óbvia mentirola, se ela não estivesse relacionada com uma manobra muito mais vasta que se relaciona com o controlo de défice de 2008.

De facto, o que parece estar pronto a ser cozinhado é a provável transferência para a Segurança Social do fundo de pensões dos colaboradores do Banco, avaliado em cerca de quatro mil milhões de euros.

Segundo Delfim Sousa, que é accionista do BCP, onde foi um quadro destacado e, também, membro da respectiva estrutura sindical e da Comissão de Trabalhadores, «esta transferência, a concretizar-se, será contabilizada como receita extraordinária da Segurança Social neste ano de 2008, e controlará o défice do Estado satisfatoriamente. Esta solução que estará na mira do Governo Sócrates, já foi testada pelo Governo de Guterres (com a transferência do fundo de pensões do BNU, realizado pelo ex-ministro Sousa Franco) e pelo Governo de Santana Lopes, para controlar o défice e cumprir os valores limite fixados pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. E foi assim, no ano de 2004, quando o ex-ministro das Finanças, Bagão Félix, transferiu fundos de pensões de empresas públicas (entre outros, o Fundo da Caixa Geral de Depósitos) para a Caixa Geral de Aposentações, conseguindo um encaixe financeiro de cerca de 1,9 mil milhões de euros.

Com gente sua a comandar o BCP, e com os principais accionistas (especialmente os que se dedicam às obras públicas) atentos e obrigados aos desejos do PS, tendo em conta o novo aeroporto e o TGV, tudo se encaminhará para uma solução que desenrasque o controlo do maldito défice.

Mesmo que, como disse em casos anteriores o Tribunal de Contas, «O impacto directo sobre as finanças públicas, que se projectará por um período longo, resultante das transferências referidas, tem um efeito positivo sobre as receitas do Estado no ano em que ocorrerem, mas têm um efeito inverso nos anos posteriores, uma vez que as receitas não serão suficientes para suportar o valor das despesas».

Perante a passividade amarela do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, o silêncio da comunicação social, mais interessada em discutir a dança dos nomes do que as manobras de Sócrates e banqueiros, as atenções voltam-se para Jo Berardo, que gosta de fazer o papel de capitalista do povo. Mas, como diz Delfim Sousa, «o Senhor Joe Berardo não é seguramente um “capitalista do povo”, como quer fazer passar na imagem que vende. Pelo contrário, Berardo defende unicamente o seu dinheiro, os seus investimentos, e o Fundo de Pensões (dos trabalhadores do BCP) representa uma responsabilidade para o Banco que quer ver eliminada, ou antes, transferida para o Estado».

E assim vai o país. Lentamente, Sócrates perde o pé. Mas enquanto não o perde de vez, milhões de portugueses afundam-se entregues a um estado que está na mão dos senhores do capital financeiro, cujas acções não estão sujeitas ao escrutínio popular. São eles que governam, mas não são eles que vão a votos.

José Sócrates e os socialistas, ao volante da sua «esquerda moderna» são, hoje em dia, as alavancas deste poder opressor e oculto, do qual não passam de meros paus-mandados. Não governam para proveito dos portugueses – para que acabem, por exemplo, os Bancos Alimentares Contra a Fome – mas, como todos sabemos, para manter nos seus feudos aqueles que os sustentam no poder, enchendo-lhes, duma ou doutra maneira, os cofres do partido e os bolsos de quem lhes faz o frete.

De onde se conclui que esta «esquerda moderna» chega a fazer corar de vergonha a velha «direita antiga».


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 16/01/2008.
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