19/09/2007

UM CÓDIGO À MANEIRA…

Passado este breve período de ausência (que, a dada altura, me pareceu demasiado longo) verifico que voltei ao ramerrão de uma vida sem graça – ou, dizendo melhor – à desgraça de uma vida que todos os dias piora.

Como disse antes de ir, questões de saúde de âmbito familiar levaram-me a um sítio que, não sendo propriamente um local perdido no meio de nada, ainda assim me permitiu um certo alheamento do que se ia passando no planeta Terra e – principalmente – neste local pouco recomendável chamado Portugal. Tentei, esforçadamente, desligar dos jornais e da televisão, razão porque regressei mais calmo. Contudo, mal caí na realidade, rapidamente perdi o sossego mental entretanto adquirido e a náusea voltou a ser a companheira do meu quotidiano. O problema é que não consigo alhear-me das coisas. Nem devo. Nem quero.

Caio, então, na vida real e reparo que andam por cá umas senhoras e uns senhores muito bens vestidos, comendo, bebendo e passeando à custa do orçamento, conversando e rindo muito, enquanto, pelo meio, discorrem sobre as voltas que pretendem dar às nossas vidas. A sua preocupação final, segundo vão tentando não dizer, é impor um novo tratado que regule o espaço comunitário, transformando-o num feudo dirigido pelas grandes potências e, consequentemente, pelos interesses económicos que nelas estão baseados.

No fundo, nada mais pretendem do que transformar a Europa num espaço regido ferreamente pelos interesses do grande capital, transformando a «outra parte» - ou seja: os milhões de seres humanos que vivem do seu trabalho – numa enorme massa obediente e manietada aos ditames da chamada economia de mercado. Os aspectos sociais e, de uma maneira geral, todos os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos europeus ficariam dependentes da vontade dos potentados económicos, perante os quais – e no caso concreto de Portugal – se esgotariam todos os vestígios da nossa independência e da nossa soberania.

Se atentarmos bem no que aqui e ali vão dizendo, ouviremos que defendem, já sem qualquer indício de vergonha ou cuidado, que nenhum serviço público é sagrado, legítimo ou, sequer, compreensível, salvo se for aberto aos interesses da iniciativa privada. Dito de outra maneira: do nascimento à morte, todos os seres humanos devem ser fonte de lucro para um qualquer grupo económico. Ou seja: o primado do lucro sobre o direito à vida. Os Direitos Humanos, tal como a sua Declaração Universal os proclama, só prevalecem enquanto couberem no saco de interesses da oligarquia financeira global.

Talvez para que isto não se discuta, nem se compreenda em todo a sua criminosa dimensão – e para evitar que suceda o que sucedeu em França e na Holanda – os grande «democratas» que dirigem os nossos destinos, fogem do referendo ao novo/velho tratado como se diz que o diabo foge da cruz.

No meio disto tudo, Sócrates arranjou tempo para ir ao beija-mão a Washington. Deu a sua pública e ridícula corridinha em cuecas, para gozo de George Bush, esse atrasado mental que, como criminoso de guerra que é, já devia estar enjaulado e à espera, no mínimo, do destino que teve Saddam. Afinal, é bom não esquecer, que os crimes pelos quais Saddam foi executado tiveram lugar enquanto ele era um amigo de peito dos EUA, e com armas e métodos fornecidos pelos próprios norte-americanos.

Falando disto, não posso deixar de me referir ao que escreveu agora o insuspeito Alan Greenspan, até há pouco presidente do Banco Central norte-americano, o equivalente ao nosso Banco de Portugal. Escreveu ele, entre outras coisas, que « foi a sede de petróleo que provocou a guerra no Iraque». No seu livro «A Idade das Turbulências», Greenspan afirma literalmente: « Sinto-me triste por ser politicamente inconveniente reconhecer o que todos sabem: que a guerra no Iraque é, em boa parte, sobre o petróleo».

Para mim – e, certamente, para todos os que me ouvem ou lêem – nada disto é novidade. Por isso, aqui me sinto tentado a repetir que Bush é culpado de crimes contra a humanidade e, com ele, todos os que, de um modo ou de outro, apoiaram – e apoiam – por acção ou omissão, as suas sangrentas aventuras.

Domesticamente, o que se discute, hoje em dia, é o novo Código do Processo Penal. A confusão é tremenda. Se, por um lado, há quem defenda que a prisão preventiva é uma pena efectiva que pode estar a ser aplicada a alguém inocente (já que a sua culpabilidade ou inocência só serão decididas em julgamento), a estranha verdade é que criminosos condenados, só porque recorreram da pena aplicada, são, automaticamente, considerados presos preventivos enquanto não for julgado o seu recurso. Assim – e porque as novas disposições do CPP, que agora entrou em vigor, obrigam a uma maior burocracia, conforme já referiu Maria José Morgado, e porque o tempo limite de prisão preventiva foi substancialmente encurtado – criminosos perigosíssimos e já condenados por crimes hediondos, podem ser devolvidos – e alguns já foram – à liberdade plena.

De facto – e para já – um traficante condenado a 9 anos de prisão por tráfico de estupefacientes deixou o Estabelecimento Prisional do Porto, no sábado. Saiu com Termo de Identidade e Residência, a mais branda medida de coacção prevista na lei. Note-se que o traficante tinha um recurso pendente no Supremo Tribunal de Justiça, depois de o Tribunal da Relação ter confirmado o acórdão da primeira instância.

Outro beneficiário do novo CPP foi o tristemente famoso Fábio Cardoso, condenado por violar o enteado até à morte (uma criança deficiente, com seis anos de idade). Os juízes soltaram-no no sábado, tudo porque o criminoso ainda espera decisão do seu recurso e o prazo de prisão preventiva foi reduzido para dois anos. Mas porque raio é que um criminoso já condenado é considerado um preso preventivo só porque interpôs recurso, é coisa que ainda ninguém me explicou, já que na maioria dos países, conhecida a sentença, o arguido é preso e termina a prisão preventiva. Praticamente, só em Portugal a preventiva continua até a sentença transitar em julgado. Enfim…

Mas talvez nem seja para os criminosos – grandes ou pequenos – de faca e alguidar que o novo CPP foi pensado. Segundo muitas opiniões, quem vai beneficiar das novas disposições legais serão os envolvidos na quase totalidade dos processos de crime económico, corrupção e de outros crimes complexos, que poderão vir a ser arquivados na sequência deste novo CPP. Carlos Anjos, presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ, tem uma expressão para classificar a situação «É o descalabro total».

Em causa estão os prazos que a nova lei prevê, bastante mais reduzidos, a que se agrega a falta de recursos humanos para apoio à investigação. «São processos normalmente morosos, que não se coadunam com os tempos de investigação que a nova lei prevê», apontou o presidente da ASFIC. Muitos dos processos estão no Ministério Público, que os está a avaliar – um por um – à luz da nova lei. «Ou acusa ou manda para arquivamento, mas é muito provável que o destino da quase totalidade seja o arquivamento. É difícil, para já, avançar um número, mas podemos falar em 70 a 80%».

O novo CPP reduz para oito meses a investigação, mas Carlos Anjos alerta que «isto é manifestamente insuficiente», tanto mais que, a par da complexidade dos casos, há o problema da falta de recursos, em particular a nível das perícias. «Só há, em todo o país e para todos os processos, 30 peritos financeiros, o que já de si atrasa em média os processos nove a dez meses».

Entrevistado pelo CM, Carlos Anjos realçou outro aspecto preocupante do novo CPP. Na sua opinião, e dado que com o novo Código os prazos de investigação serão de seis meses para crimes simples e de oito meses para a criminalidade organizada, a «Assembleia da República matou a investigação. Ao aprovar o Código, não teve em conta que uma perícia de laboratório demora, em média, nove meses e uma financeira quatro meses». Exemplifica, dizendo que «no caso Freeport estamos à espera há dois anos de informações do Reino Unido e no chamado caso João Pinto esperamos há oito meses uma resposta do Luxemburgo. Assim, terminados os prazos o que acontece é o arguido, detido ou solto, poder consultar a investigação realizada pela Polícia Judiciária e assim arruinar o trabalho. O advogado do arguido pode ainda realizar diligências, como pedir uma carta rogatória no estrangeiro – cuja resposta sabe que vai demorar meses a obter – para fazer com que os autos acabem por ser arquivados. Isto dá cabo de toda a investigação».

Também a impossibilidade de os jornalistas publicarem o teor das escutas telefónicas, mesmo daquelas que já tenham sido divulgadas em tribunal, parece uma medida orientada para proteger casos semelhantes aos do Apito Dourado e Casa Pia. Aliás, o próprio Partido Socialista está agora sob sérias suspeitas de estar ligado a actividades ilegais no Brasil, relacionadas com o financiamento das suas campanhas junto do círculo da emigração. Resta saber se o teor das escutas telefónicas realizadas pelas autoridades brasileiras no âmbito deste escândalo, também estará sujeito ao sigilo imposto aos casos julgados pelas autoridades portuguesas.

Mas o que fica disto tudo, para além de um claro incremento dos índices de insegurança em que vivemos, é que o novo CPP foi feito à medida dos interesses dos criminosos de colarinho branco – essencialmente os que se dedicam ao crime económico e à grande corrupção.

O que não admira, sabendo nós quem são eles, onde estão instalados e em que círculos se movem .


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas "Provocações" da Rádio Baía em 19/09/2007.
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