18/07/2007

A REDUÇÃO DO DÉFICE, OU A REDUÇÃO DA VIDA?

A redução do défice corresponde à redução da nossa saúde, da nossa educação, da nossa segurança social, do nosso futuro. Da nossa dignidade. Para o senhor Sinistro das Finanças, não há vida para além do Défice.

Com a devida vénia ao jornalista António Ribeiro Ferreira, pessoa que anda muito longe de mim em termos ideológicos, vou ler-vos, integralmente, a crónica que este colaborador do Correio da Manhã escreveu na edição do dia 16 deste mês. São, então, palavras dele:

« Com o patrocínio de Sócrates, este sítio está, dia após dia, a voltar ao tempo em que falar de liberdade era sinónimo de subversão.
Em tempos que já lá vão, neste sítio cada vez mais mal frequentado, havia uma censura cega e muito burra, que zelava não só pelos bons costumes como pela paz podre do cemitério. Era linear, sem grandes enredos intelectuais e elaboradas justificações ideológicas. Era assim, ponto final. Uma das normas dos coronéis lateiros da saudosa censura era evitar, a todo o custo, que o povo soubesse antecipadamente os passos do senhor presidente do Conselho .
A palavra «vai» era rigorosamente cortada pelos lápis azuis. As razões para essa medida com grande sentido de Estado eram várias. Mas as mais óbvias tinham a ver com a segurança de tão alta figura, sempre preocupada com comunistas, anarquistas e outras almas perdidas no tenebroso mundo da subversão, e com o natural desprezo que a dita sentia pelo povo do sítio .
O senhor presidente do Conselho só admitia olhar para a turba à distância, longe de odores e dizeres desagradáveis, que ordeiramente era conduzida em comboios e camionetas para manifestações organizadas pelo partido único, em momentos festivos ou de combate às forças negras do reviralho, domésticas ou internacionais.
Na sua infinita sabedoria, o povo deste sítio logo apelidou Sua Excelência de senhor Esteves. Nesses tempos que já lá vão, essa graçola marota não era castigada pelos esbirros da PIDE e os bufos do regime sabiam perfeitamente que nem sequer valia a pena denunciar quem a dizia em cafés, repartições públicas, autocarros, eléctricos, baptizados, casamentos, funerais ou simples festas de família. Era uma graçola, ponto final.
O senhor presidente do Conselho, ele próprio, sorria superiormente quando estas e outras anedotas lhe eram contadas com todo o respeito pelas figuras que tinham a seu cargo essa espinhosa missão. Os tempos mudaram, as gaivotas da democracia deram à costa há mais de 33 anos e eis que voltam, inesperadamente, não só os esbirros, como os censores e o próprio senhor Esteves.
O presidente do Conselho José Sócrates entra pelos fundos da Casa da Música no Porto, para fugir à turba, e inaugura uma ponte sobre o Tejo com o povo ao longe, rigorosamente vigiado. Os esbirros de serviço suspendem, despedem e ameaçam quem ouse dizer graçolas inocentes .
E os velhos coronéis lateiros foram substituídos pelos doutores e doutoras da Entidade Reguladora da Comunicação Social e da Comissão da Carteira dos Jornalistas. Com o alto patrocínio do senhor presidente do Conselho e dos acólitos socialistas este sítio está, dia após dia, a voltar ao tempo em que falar de liberdade era sinónimo de subversão ».

Isto foi escrito, como disse, pelo jornalista António Ribeiro Ferreira, pessoa que está muito longe de ser considerada de esquerda. Apesar disso – ou por isso mesmo – quero aplaudir o texto e pedir-lhe autorização para assinar por baixo.

O senhor Esteves (que dantes era António de nome e Salazar de apelido, e hoje foi baptizado como José e gosta de ser tratado por Sócrates, embora os apelidos sejam uns prosaicos Pinto de Sousa), então o senhor Esteves dos nossos dias que se cuide, mais a sua corte de esbirros e bufos «socialistas», porque este voltar ao passado não traz só coisas más. Também vai trazendo, aqui e além, umas ténues teias de cumplicidades e alianças, um certo reagrupar de forças e resistências, de tal forma que, um dia destes, quando menos esperarmos, as coisas deixarão de ser como são. Aliás, já Camões sabia que todo o mundo é composto de mudança…

Falemos, agora, das eleições em Lisboa. António Costa é o novo presidente da Câmara, mas a grande vencedora das eleições autárquicas intercalares foi a abstenção, que bateu o valor recorde de 62,61 por cento.

Ao falar da grande vitória, os socialistas escondem que foram muito menos os lisboetas que votaram no PS vitorioso de António Costa, do que no PS derrotado de Manuel Maria Carrilho, em 2005, já que no domingo votaram no PS 57.907 cidadãos, e, em 2005, votaram em Carrilho 75.022. Isto é: o PS, em dois anos, perdeu, em Lisboa, mais de 17 mil votantes.

Para um partido que todos os dias arrota postas de pescada sobre as excelências da sua governação, e cujas sondagens não deixam de lhe conferir uma vantagem confortável, não deixa de ser significativo que, nas urnas, perante uma oposição dividida – e concorrendo com um dos seus pesos mais pesados (meus senhores, aquela barriga esférica e opada não engana: a política engorda mesmo…) tenha alcançado tão mísero resultado. Afinal, dos eleitores inscritos, só 11 % votaram em António Costa.

Mas o fenómeno da abstenção, que afectou seguramente todas as candidaturas, é o que mais significado tem. Pouco a pouco, o povo vai dizendo, com os seus votos em branco e com a sua ausência das urnas, que não acredita nesta política e nestes políticos. Que está farto. Que já sabe que o seu voto não resolve nada, e só os «adeptos dos clubes» - isto é: os indefectíveis dos partidos – se dão ao trabalho de ir ao jogo puxar pelo clube de cada um. Mesmo que, depois, nada ganhem com isso.

O que muita gente ainda não percebeu – e os que perceberam não disseram – é o que significa Teixeira dos Santos ter vindo dizer, com ar de festa, que o défice talvez fique abaixo dos 3%. E o homem falou disto como se o governo estivesse a realizar um feito magnífico, a que correspondesse uma benfeitoria para os milhões de portugueses que vivem e sofrem no país onde tiveram a infelicidade de nascer.

É que à redução do défice corresponde a redução de escolas, a redução de vários serviços de saúde, a redução da protecção na doença e no desemprego, a redução das reformas, vendo-se cada vez mais gente obrigada a trabalhar até morrer, como todos os dias vamos sabendo de mais casos. A redução do défice corresponde à redução da nossa vida, à redução da nossa esperança numa vida digna, à redução da nossa liberdade. A redução do défice corresponde à redução de mais leite para as nossas crianças, pois o seu preço é superior à média europeia, embora sejamos obrigados a reduzir a produção para cumprir as imposições dos países ricos da UE.

Daqui dou um salto para as afirmações de Saramago, segundo as quais Portugal pode estar a caminho de ser uma província de um novo país, chamado Ibéria. É claro que saíram disparadas reacções de sinal contrário. Aplausos e apupos. No fundo, esqueceram-se os mais patriotas que Portugal já não é um país independente há muitos anos, desde que aderiu a uma União Económica que o obrigou a abrir mão da sua siderurgia, que o impede de pescar o que precisa, que o obriga a arrancar vinha e olival, a produzir menos leite (embora hajam crianças que nem o cheiram), que está impedido, em suma, de produzir tudo aquilo que podia e devia para que não houvesse tanta fome por aí. Por imposição da UE, nem uma simples fava ou um singelo brinde podemos ter no bolo-rei. É claro que para esses patriotas, Portugal não foi vendido ao estrangeiro por Soares e Cavaco, nem a nossa independência económica se perdeu a troco de betão e subsídios para jipes e coutadas.

Na verdade, Saramago apenas teorizou a partir de uma realidade económica, social e geográfica, numa perspectiva de evolução política onde cada povo mantivesse a sua língua, a sua cultura e a sua autonomia.

O que eu não sei é se a outra parte da Ibéria, aquela que não fala português, estaria interessada em juntar-se a este bocado de terra e a este magote de gente, que de tão frouxa e decadente, trinta e três anos depois de se ter libertado de uma ditadura, já se deixou enredar, pacificamente, nas teias de uma outra ainda mais trituradora, feroz e descarada. Onde as vidas humanas não valem por si, mas por aquilo que dizem as contas de um fulano sinistro, chamado Teixeira dos Santos.

E um certo «socialista», que já foi presidente da República e, enquanto tal, lembrou ao governo de então (que não era PS) que havia mais vida para além do défice, anda agora muito entretido a ganhar uns milhares para fingir que combate a tuberculose no mundo, devendo achar, nos dias que correm, que, sendo o Governo «socialista», haverá sempre mais défice para justificar o sacrifício de mais vidas.

E depois, dizem que a taxa de abstenção é muito alta. E vai piorar, meus amigos, vai piorar.


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas "Provocações" da Rádio Baía em 18/07/2007.
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