21/03/2007

FOI HÁ QUATRO ANOS…

Nestes dias em que a baronada do CDS/PP divertiu o país inteiro, mostrando o que é, na realidade, o «charme discreto da burguesia», pensei fazer desta paródia o tema da minha crónica. Mas pus-me a pensar que nem Portas, nem Ribeiro e Castro valem tantos minutos. Que se amanhem.

Poderia, também, atirar-me ao que disse um ouvinte, há oito dias, nada preocupado com a situação na Rhode, pois acha que os interesses económicos são sacrossantos, ao pé dos quais, em consequência, os direitos humanos são coisa de somenos, meros detalhes. Mas esse ouvinte, que faz gala em se dizer de direita, acaba por explicar, melhor do que as minhas palavras, o que há de desumano e perverso nas políticas que defende. Pus, por isso, a ideia de lado.

Foi então que uma crónica publicada no Correio da Manhã e uma pequena notícia me recordaram que a guerra do Iraque começou há quatro anos.

Vamos primeiro à notícia, cujo título é este:

«CONFESSOU ATAQUE A UM BANCO FUNDADO APÓS A SUA PRISÃO»

E lê-se no texto:

«Khalid Shaikh Mohammed, apresentado pelo governo norte-americano como suposto autor dos atentados do 11 de Setembro, confessou o assalto a um banco fundado após a sua prisão. "Fui responsável pelo planeamento, treino, supervisão e financiamento dos ataques ao Plaza Bank, no estado de Washington", disse ele na confissão que lhe foi extorquida no campo de concentração de Guantanamo. A prisão de Khalid foi em 2003 e o referido banco foi fundado em 2006. Com os tratos aplicados pelas polícias políticas de Bush, este pobre Khalid seria capaz de confessar até mesmo o assassinato de Jesus Cristo».

Vejamos se eu entendi bem. O homem está preso pelos norte-americanos desde 2003, o banco só é fundado em 2006, e ele confessa que organizou financiou e supervisionou o assalto a esse banco?! E ainda dizem que em Guantanamo os prisioneiros estão sujeitos a um regime desumano. Más línguas… Até podem, da prisão, organizar assaltos a bancos em plenos EUA!

Muito bem. Mas fez ontem quatro anos que os EUA invadiram o Iraque. O pretexto para a invasão, conforme se lembram, foi o de que Saddam Hussein apoiava o terrorismo internacional, em geral, e a Al Qaeda, em particular, para além de ter um arsenal de armas de destruição maciça capaz de pôr em perigo toda a civilização ocidental.

Hoje, quase todo o mundo sabe aquilo que muitos de nós já sabíamos na altura: tais pretextos não passaram de um conjunto mal amanhado de mentiras reles e grosseiras, apoiadas em «provas» toscamente fabricadas, e que o objectivo imediato da invasão foi o de deitar a mão aos imensos recursos petrolíferos existentes no Iraque. Sabemos, para além disso, que a invasão do Iraque se enquadra numa estratégia global de dominação do mundo por parte dos norte-americanos, única maneira de poderem alimentar o seu sistema económico-financeiro, altamente dependente da sangria que, a bem ou a mal, praticam sobre o resto do planeta, e a que podemos chamar, com todo o rigor, «colonização global».

Em consequência directa da invasão do Iraque, já morreram mais de 650 mil iraquianos, entre militares e civis (homens, mulheres, crianças, idosos) e as tropas invasoras, só em baixas confirmadas pela coligação, já vão nos cerca de 3.500 mortos, na sua grande maioria norte-americanos. A somar a isto, há os soldados que morreram já depois de regressados aos EUA ou aos seus países, mais os estropiados, mais os que, afectados psicologicamente, deixaram de ser, para sempre, pessoas com uma vida normal. E há o pessoal civil norte-americano e de outras nacionalidades, designadamente mercenários e outros aventureiros, usados em funções de segurança, cujas mortes não são divulgadas nem constam das estatísticas.

Há dias, José Saramago lembrou a Cimeira das Lajes, onde foi dado o tiro de partida para a guerra, considerando-a «ridícula» e «grotesca». Devo dizer que o escritor nem foi tão contundente como poderia ter sido. «Ridícula» e «grotesca» é o mínimo que se pode atirar ao triste episódio que teve Durão Barroso como lacaio-mor, enquanto Bush e Blair, como fhurer e vice-fhurer, respectivamente, deste sinistro e dissimulado IV Reich, carimbavam as coordenadas do genocídio.

Apesar de todas estas evidências, que os últimos quatro anos abundantemente confirmaram, alguns escribas ainda por aí se vão empenhando em esgotar os neurónios para justificarem o crime. Empertigados nas suas colunas de opinião, acomodados nos estofos que os impérios sempre reservam para estas figuras, consolados com os muitos ordenados mínimos que acumulam só para dizerem o que dizem, de tal modo – e tão vigorosamente – se espremem, que se lhes esgota o miolo e a lucidez. Por isso, não se aperceberem do ridículo das suas teses e da vacuidade dos seus argumentos.

É o caso de um certo Alberto Gonçalves, esforçado admirador/servidor do império, que no Correio da Manhã alinhavou, a propósito das afirmações de José Saramago, coisas destas: «À primeira vista, a condenação da guerra no Iraque atingiu uma espécie de consenso universal. O sintoma não está nos protestos organizados, na maioria provenientes do caldo ideológico que criou Saramago. O sintoma está nas próprias reportagens dos protestos, que eliminaram o espaço para as dissidências e as hesitações a fim de decretar: a guerra foi um erro. Um erro e, segundo concluiu esta escola de isenção jornalística, uma deliberada mentira».

Concluiu-se que, para cronista, as notícias das manifestações contra o Iraque deveriam merecer, por parte dos jornalistas que cobrem esses factos, um conveniente comentário laudatório das teses que justificaram a invasão. Ou seja: a repetição das mentiras que conduziram à guerra, propaladas por Bush e Cia., mentiras que, aliás, já foram publicamente admitidas pelos seus autores, coisa que o cronista não sabe, ou prefere dar de barato.

Deslumbrado com o seu brilhante raciocínio, continua o clarividente cronista: «Por estes dias – diz ele – dez minutos de um qualquer noticiário resumem a matéria com catedrática confiança. Após dez minutos, o espectador médio repete convictamente a tese da mentira (ao invés de Bush, o sr. Blix não mente) e as teses adjacentes: Saddam não representava nenhum perigo para o Ocidente».

E mais adiante: «Parecem-me demasiadas certezas. Eu só tenho duas: 1) não gostaria de viver sob os sagrados preceitos islâmicos; 2) apenas a América é capaz de combater a ameaça que o islamismo pendurou sobre as nossas tolerantes cabeças».

Se bem percebi a prosa, entende o cronista Alberto que Bush pode – ou não – ter mentido, mas que o senhor Blix (que era o chefe da equipa de inspectores que as Nações Unidas tinham no Iraque para verificar da existência de armas de destruição maciça), também podia estar a mentir ao concluir que nenhuma arma dessa natureza foi encontrada no país. Isto é: afinal, as armas sempre podiam existir, e Saddam queria invadir os países ocidentais, eventualmente liderando uma vasta coligação islâmica, destinada, antes de mais, a impor os seus preceitos à cristandade.

Coitado do Alberto! As coisas que ele sabe! O pior, no entanto, é aquilo que ele não sabe – ou finge não saber, o que seria muito, mas mesmo muito feio.

Não sabe, por exemplo, que o Iraque era um exemplo de tolerância religiosa, onde vários credos conviviam – incluindo o católico – sem problemas de qualquer espécie. A menos que, para ele, a comunidade católica e as suas igrejas sejam uma criação dos norte-americanos. Não sabe, também, que o Iraque já era dos países mais ocidentalizados da região, onde as mulheres podiam vestir-se e agir como quisessem, coisa que, por exemplo, não acontece no Koweit ou na Arábia Saudita, onde vigoram rigorosos regimes feudais, machistas e profundamente antidemocráticos. Não sabe que já é pacífica e universalmente aceite que o Iraque nunca esteve relacionado com o chamado terrorismo internacional – e, principalmente, que não mantinha ligações à Al Qaeda. Não sabe que, militarmente, o Iraque não representava um perigo real para nenhum país, e que só representou esse perigo enquanto os EUA o armaram e atiçaram contra o Irão, na ressaca da queda da ditadura do Xá, Reza Palehvi, o ditador tirano – e, como nós sabemos, grande amigo dos norte-americanos.

Não sabe, finalmente, que não é o mundo islâmico que pretende impor os seus dogmas ao pobres e desprevenidos ocidentais, mas que são os EUA, à frente – e em nome – do civilizadíssimo e cristão mundo ocidental, que impõem o seu domínio (militar, económico e cultural) ao resto do mundo – mundo islâmico à cabeça.

Na realidade, não é o mundo islâmico que tem centenas de bases militares espalhadas por todo o globo, tal como não é o mundo islâmico que invade países na Ásia, em África, na América Latina, ou na Europa. Não é o mundo islâmico que dispõe de um arsenal de armas de destruição maciça, capaz de destruir várias vezes o nosso planeta (como se uma não bastasse…). Tal como não foi o mundo islâmico que lançou duas bombas atómicas sobre centenas de milhares de civis japoneses, nem bombardeou – até com armas químicas – durante anos a fio, os campos e as cidades vietnamitas.

Diz, então, este Alberto, na sua rechonchuda crónica, que não gostava de «viver sob os sagrados preceitos islâmicos». Mas gosta, pelos vistos, que o resto do mundo viva de acordo com os preceitos sociais, políticos e económicos made in USA, e impostos – se tal for preciso – a ferro e fogo. Seria – esta crónica a que me venho referindo – uma bela manifestação de neocolonialismo serôdio, se não fosse, antes de tudo, um magnífico exemplo do que pode produzir uma mentalidade decisivamente vassala.

Quanto a mim, porque quero viver num mundo de paz e liberdade, onde os homens e os povos se respeitem nas suas diversas opções e culturas, e onde os povos e os seus governos cooperem no respeito pela independência de cada um, sou dos que se manifesta contra esta guerra, esperando que os EUA saiam ainda dela mais humilhados do que saíram, há décadas, do Vietname.

Porque, meus amigos, é mais fácil cair-nos em cima uma bomba norte-americana, ou alguns de nós sermos «democraticamente» metidos num avião da CIA, rumo a Guantanamo, do que sermos obrigados a rezar a Alá cinco vezes por dia.

Não acham?


Crónica de: João Carlos Pereira
Lida nas “Provocações” da Rádio Baía em 21/03/2007.
(Não deixe de ouvir em 98.7 Mhz e participar pelos telefones 212277046 ou 212277047 todas as quartas-feiras entre as 09H00 e as 10H00).

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